14.10.08

Vida após a morte





Era dezembro, o Natal havia acabado de passar e 2000 tinha sido um ano maravilhoso.
A gente tava pronto pra ir passar mais um reveillon em Ilha Bela.
Seria o meu segundo e o primeiro já havia sido marcante.
Lá, em Ilha Bela, eu tinha feito promessas quando o ano nasceu.
Queria voltar pra lá com meu sorriso orgulhoso em apresentá-las cumpridas.
Dessa vez, eu tinha um sorriso.
Dessa vez, eu tinha até dinheiro.
Dessa vez, tudo ia ser diferente.

O que eu não imaginava era o quanto seria diferente.

A gente estava com tudo pronto quando o céu começou a chorar em desespero.
Era uma tempestade furiosa e nenhum de nós sabia o que fazer.
Talvez, se alguém tivesse gritado “vamos assim mesmo”, a gente teria ido.
Mas a chuva era tanta que, mesmo se alguém gritasse, não seria ouvido.
A decisão foi passando de boca em boca: partiríamos de manhã cedo.
Voltei pra casa e tentei dormir mais um pouco.

só um pouco.

E o telefone tocou.
Era o Bill.
“O Vlad morreu”.

(silêncio)

Eu fiquei mudo.

Quis enganar a realidade.

O Vlad era a pessoa mais querida que poderia haver no mundo.

Ele é mais que eu posso dizer.

Foi assassinado por um nóia que deve ter se assustado com o próprio susto que deu nele e acertou o coração do Vlad em cheio, do jeito mais vil e covarde que poderia haver.

Evidentemente, eu não fui viajar.

O velório do Vlad foi a coisa mais triste que eu vi na vida.

Aquilo sim era tragédia.
Aquilo nnão devia ter acontecido.
Lembro bem o quanto desandei quando cheguei e vi “Vladimir Tuccilio” escrito na porta.
A Calu já tinha me ligado gritando de tanto chorar, eu já tinha avisado o máximo de pessoas que eu podia e sabia como avisar, mas quando vi aquilo eu engoli uma saliva amarga e nada fazia mais sentido.
Pensando bem, aquele ano tinha sido especial em muitos sentidos, mas, depois daquilo, 2000 sempre foi o ano que o Vlad morreu.

Não lembro nada do resto.

Conheci pessoas fantásticas naquele ano, fiz coisas maravilhosas, viajei, escrevi, produzi, mas não adianta: 2000 foi um ano maldito, porque foi nele que o Vlad morreu.

O velório acabou.
O enterro acabou.
E agora?

Achei que seria bom ir pra Ilha Bela, mesmo que forçado.
Porque o que eu queria era ficar em casa e só.

Voltei pra casa e vi com o Américo que ele ia pra Ilha no dia seguinte.
Vi também que o João Paulo ia também e que ele ia precisar voltar no mesmo dia que eu.
Achei que era melhor ir sim.
Ficar em casa seria violência contra mim.

Gravei uma fita pra ouvir no caminho.
Lembro dela até hoje.
Tinha “Everybody's Free To Wear Sunscreen”,
tinha “Heart Of Glass”
e tinha uma música em especial que eu repetia o tempo todo
e desci a serra toda cantando aos berros,
que era aquela do final dos Saltimbancos,
que diz “todos juntos somos fortes/
somos flecha e somos arco/
todos nós do mesmo lado/
não há nada a temer”.

Fui sozinho no Santana Blues Brothers que meu pai tinha e o Américo e o João Paulo foram na frente.
Os dois sabiam o que tinha acontecido e estavam avisados que,
se eu não conseguisse mais dirigir, ia dar sinal de farol e pedir pra encostar.
Só que isso não aconteceu.

Ter ido sozinho me fez criar um plano.

Eu simplesmente não podia fingir que aquilo não tinha acontecido.
Precisava, de algum jeito, dar uma resposta pro mundo.
Eu estava junto com Vlad.
Juntos, éramos fortes.
De qualquer modo, eu estava junto com o Vlad.
Éramos flecha e éramos arco e não havia nada a temer,
mesmo agora, que não estávamos mais do mesmo lado da vida.

Foi ali que eu bolei aquele plano maluco.
Pensei o seguinte: eu me tornaria o Vlad.

Ninguém lá conhecia ele.
E aquelas pessoas – e todas as pessoas do mundo – PRECISAVAM conhecer o Vlad e o único meio disso acontecer era através de mim.

Eu era só um mensageiro e, como mensageiro, eu não era importante.
Havia uma mensagem e ela, sim, era importante.

Foi assim que eu pirei.

Não houve um momento que eu deixei de pensar nele e não houve um momento em que eu não estivesse dolorido.
Só que dor é uma coisa – e é um fato.
Sofrimento, é outra coisa completamente diferente - e é uma interpretação sua pro fato.
Eu abdiquei na minha interpretação.
Não quis homenagear a morte do Vlad.
Pelo contrário, com a minha vida, homenageei a VIDA dele.
E assim foi.

Falei merda,
fiz merda,
enchi a caçamba da pick-up do Américo de gente,
dei de aeromoça fazendo "serviço de bordo",
dei cerveja pras pessoas,
cantei alto pra caralho do jeito mais performático que eu era capaz,
fiz batucada de “eu amo meus vizinhos” junto com o Torna,
separei briga de pardal,
dei nome pra cachorro (o Sheik até hoje atende por Fudêncio e é culpa minha),
abraçava gente que eu nem conhecia,
fiquei botando “And She Was”, dos Talking Heads e ensinando os outros a cantarem “eu vou tomar um Chivas” no lugar da letra original (e ainda ficar ansiosamente esperando o refrão),
reparti meu pão,
caguei pros orgulhinhos idiotas,
fiz amizade com todo mundo que me atravessou o caminho
e esqueci completamente de mim.

Na virada, sozinho, eu gritava o nome dele dentro do mar,
debaixo d'água,
embaixo das estrelas,
tomei banho de champanhe barato e chorava,
chorava, chorava e chorava.

No fim de tudo,
encontrei uma menina pra quem a gente tinha dado carona,
já na Vila, depois da virada, que foi na Praia do Curral.
Não sabia o nome dela, mas a gente parou,
se abraçou e se olhou no fundo dos olhos,
com as testas grudadas uma na outra,
e desejou que 2001 fosse um ano bom pra caralho.

Aí, quando eu fui em frente,
ouvi ela comentar com a amiga que estava com ela, às minhas costas:
“Cara, você não faz idéia do quanto esse cara é foda. Ele é MUITO LEGAL!”

Aí, meus joelhos dobraram e eu olhei pro céu.
Os fogos pintavam tudo com as cores mais lindas que já foram inventadas

Foda é o Vlad.

Ele que é MUITO LEGAL.

Ele que me ensinou a ser isso que eu sou.

E seu eu sou algo assim, é só porque eu não deixo morrer a melhor parte da melhor pessoa que eu já conheci.

Por isso, eu te digo.
Espero que você nunca perca alguém que você ama.
Sei também que isso não é possível.
Porém, quando isso acontecer, homenageie essa pessoa com a sua vida.
Assim, ela vai viver pra sempre e será sempre uma companhia.
Não pense no que morreu junto com ela.
Pense em você.
E pense, sobretudo, no que, em você, vive depois da morte.
Você é o único jeito de imortalizar quem você ama.
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9 comentários:

Kakaya disse...

Chorei!

E prometo que vou contar do meu reveillon...Vou contar mais de um logo!rsrsr!

Saudade mt mais palpável de vc!!!
TEAMO

Kakaya disse...

Aaaah!E essa foto tá na geladeira né ;)

Anônimo disse...

Este post me fez chorar e voce sabe o porque.
Mas a gente vai tentando levar a vida, apesar da ferida aberta e apesar de muitos momentos de recaida. Muitos mesmo.
Como vc pode ver, I'm not a Wonder Woman at all!
Mas tentarei seguir o seu conselho. Viver de maneira com que possa homenagear e imortalizar quem se foi. Nao vai ser nada facil, mas quem disse que seria, nao é?
Super beijo!

Anônimo disse...

Tenho que admitir que estou chorando também, Fernando. No meio do escritório. E, tenho que admitir novamente, que mais pela forma sua de homenagear o Vlad do que a perda em si. A perda é inevitável, já aprendi. A forma como vamos vivê-la e senti-la é a diferença...

Obrigado. De verdade.
Grande abraço.
Gabriel

Anônimo disse...

http://www.youtube.com/watch?v=NZlGjl2lPws

Calu Baroncelli disse...

eu nunca vou esquecer daquele ano.

Calu Baroncelli disse...

e, muito menos, vou esquecer o Vlad.

Rodragon disse...

Oi Fe.
Cara, eu moro na Alemanha já há mais de 2 anos, e sabe que longe da família e amigos a gente procura buscar conforto da memória. Foi nessa que decidi "googlear" o nosso Vlad.
Não sei bem o q escrever agora, logo depois de ler seu texto.
Você colocou coisas em palavras que eu não sei se não lembrava, ou se me deu mais uma lição. De como viver, brincar, ser um cara legal com os outros sem querer nada em troca,... tudo que o Vlad foi, todos admiravam, e sentimos falta. Nunca conheci alguém como ele, e vai ser difícil conhecer. Se perguntarem "Como?", não dá pra explicar, né! Mas a gente pode ser um pouco Vlad, pra passar pra essa pessoa um pouco do que foi esse amigo fabuloso, e deixá-la, com certeza, uma pouco mais feliz.
Abraço carinhoso,
Rodrigo Poppi

Fulvio Pereira disse...

Não sabia desse texto. O Poppi me contou e tive que conferir. Realmente, sensacional.
11 anos se passaram, mas parece que ainda vejo as caras de alegria e ou espanto, escuto gargalhadas e xingamentos clássicos como "cornetooone". Tomei a liberdade de imitá-lo inúmeras vezes. É uma forma que arrumei para ter a lembrança sempre muito próxima.

Um forte abraço!!
Fúlvio