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12.7.09

(might as well) jump





esses dias, terminei um texto falando sobre meu avô.
sobre a morte dele.
pelo visto, é o único texto deste tipo que eu vou escrever.
a não ser que eu me lembre de mais alguma coisa e queira acrescentar ao que já escrevi, embora duvido que isso aconteça.

falar sobre a vida do meu avô, no entanto, é uma coisa que, enquanto houver algo que me lembre de dizer, não acaba.

faz um tempo que venho lembrando de uma conversa decisiva que eu tive com ele, quando tava naquela fasezinha de merda que é o fim da infância e o começo da adolescência.
era uma fasezinha de merda porque eu já tava na sexta série e os brinquedos iam mudando.
eu tinha vergonha de contar que tinha passado o fim de semana brincando com a minha prima, enquanto meus amigos contavam histórias mirabolantes sobre carros, sobre filmes, sobre discos e tudo mais.
meus pais haviam manifestado a idéia de me dar um rádio com toca-fitas de presente de natal e eu não sabia se queria ganhar aquilo.
posso estar muito enganado, mas acho que escrevi numa margem de caderno “eu não quero um rádio”.
o que chega a ser até engraçado porque em todos os meus cadernos, em todos os anos subseqüentes, eu desenharia o mesmo rádio em todas as margens de todos os cadernos. sempre o mesmo rádio.
aquele, que eu ganhei no final de 1985.

quando eu ganhei o rádio, eu tava em poços de caldas.
entre o natal e o ano novo, uma rádio de lá fez um daqueles programas que hoje eu sei que é feito pra dar folga pra todo mundo. eram as 300 melhores do ano.
podiam ser as mil melhores do ano.
ganhei umas fitas basf, cromo, e ficava de plantão do lado do rádio tentando gravar alguma coisa que prestasse.
também posso estar enganado, mas a música que eu queria que tocasse mais era “we are the world”.
lembro de ter gravado, naquele primeiro dia com o rádio, “simca chambord”, do camisa de vênus, a música trilha do filme “stallone cobra”, alguma coisa da legião urbana – aliás, várias coisas da legião urbana.
era um mundo novo aquele.
e eu tinha medo dele.

eu lia os gibis da turma da mônica e não queria me tornar um adulto.
tinha assistido “neverending story” e tinha medo que o nada comesse meu mundo e que eu jamais pudesse reconstruir.
eu só fui dar meu primeiro beijo no segundo colegial.
minha primeira vez, eu tava na faculdade.
não que eu seja nenhum retardado, mas é certo que eu era um retardatário.

fazia uma cara que eu tava trancado no quarto do hotel esplêndido e não queria ir pra lugar nenhum. ia ter aquele jantar antes da ceia do ano novo, e eu achava aquilo inútil. eu tava inteiro vestido de preto, com uma camiseta da bonés na c&a e queria continuar ali com o rádio, gravando o máximo de música que eu podia gravar.
pediram pro meu avô ir lá me buscar.

ele sempre conseguia por um único motivo: porque ele não tentava.
eu queria ir com ele e ele só precisava fazer isso valer.

ele chegou devagar e sentou na cama.
ficou vendo o que eu estava fazendo – que, aparentemente, era nada.

a gente ficou em silêncio um tempo e eu pensei que seria uma boa pra fazer a pergunta mais decisiva de todas pra única pessoa em que eu acreditaria na resposta (por mais que essa pessoa seja a mesma que apontava navios da praia grande e dizia “ó, foi um daqueles, cheio de sal, que afundou e fez o mar ficar salgado”).

“vô... é ruim ficar velho?”

ele não esperava por isso.
mas respondeu brilhantemente.

nesta semana, tive minha primeira queda de pressão e precisei de cuidados.
não médicos, mas, ainda assim, cuidados.
inevitável: aos 36 anos de idade incompletos, me senti velho.
depois disso, fiquei com um pouco de medo de sair na rua e aquilo acontecer de novo, mas passou assim que eu saí na rua e não aconteceu nada.
(eu também senti medo. e quando vi do que tive medo, soube também o que me era importante.)
daí, no meio dos livros que moram no meu banheiro, tem um livro de memórias do marcelo mastroianni e nele – na página 153, pra ser bem preciso – tem um texto que foi bom de ler. ele se chama “a sabedoria de um quixote”.

“e vivem falando da sabedoria dos velhos!
prestem atenção num velho atravessando a rua: primeiro ele olha para a direita, depois pra esquerda... mas isso não é sabedoria. é prudência, é temor, é medo. porque, se o velho tivesse vinte anos, atravessaria a rua num pulo só.
mas talvez, paradoxalmente, pelo menos no meu caso, a estranha sabedoria da velhice esteja em sempre dizer ‘sim’ à vida. mesmo nos momentos mais difíceis, mesmo nos momentos mais complicados.
é verdade, em determinado momento, é preciso ir embora, e todo mundo sabe disso. mas para que servem as verdades inúteis?
acho que todos somos um pouco dom quixote: certas ilusões são mais fortes que a realidade.
bom, não é assim também no cinema?”


naquela véspera de 1986, meu avô, pacientemente me falou um monte de coisa que eu gostaria de ter guardado melhor, ou em um lugar mais seguro que na minha cabeça de passarinho. lembro dos seus olhos mirando janela afora, por cima do telhado onde os gatos miavam e se perdendo lá longe num horizonte que ele nem via.
lembro dele me perguntar: “você tem medo do quê?” e eu ter respondido que não tinha medo de nada e ele ter dito que eu ia ter medo de tudo – e eu tinha medo de tudo, tinha medo, inclusive, de dizer aquilo.
ele disse que, se eu sentisse medo, tudo bem, e que a merda era deixar o medo parar você. que às vezes, é justamente pra além dele que a gente tem que ir.
era a primeira vez que alguém me dizia o que fernando pessoa finalmente marcaria a ferro e fogo na minha alma: quem quer passar além do bojador, tem que passar além da dor.
de tudo que ele me disse naquela noite, confesso que guardei muito pouco. talvez algumas coisas tenham ficado em mim mais do que eu suspeito, mas a memória é uma coisa meio traiçoeira.
lembro perfeitamente dele me dizendo que a melhor coisa em se ficar velho é que você percebe muito melhor as coisas que você gosta e evita muito melhor aos coisas que você não gosta.
daí, você sabe o que fazer pra ser feliz.
se você faz ou não, é coisa entre você e seu próprio medo.

foi então que ele botou a mão na minha cabeça, deu aquelas gemidas engraçadas que ele dava ao levantar, e disse “vamos”.
e eu fui.
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8.3.09

two little indians






Quando eu era pequeno, meu avô contava uma história de um índio e uma índia, que sempre achei que deveria ser botada no papel. Ainda mais hoje em dia.
Essa história parece fazer até mais sentido hoje do que na época que ele me contou – que deve ter sido na época que minha irmã nasceu.

Eram dois índios – um índio e uma índia – que viviam em aldeias diferentes. Todas as noites, eles ficavam olhando as estrelas, cada um no seu canto. Passavam a noite toda lá, olhando estrelas – nunca juntos – porque havia um lago separando um do outro.
Nunca se encontravam, mas, quando isso acontecia, os dois ficavam horas falando a respeito das estrelas do céu.

Houve um dia, numa espécie de expedição diplomática que uma aldeia empreendeu à outra, o índio e a índia conseguiram se encontrar e, nesse dia, com o tempo ao lado deles, os dois conversaram tanto e de tal maneira que foram lembrando noite após e contaram as estrelas de todas suas vidas de trás pra frente e, nessa regressão, voltaram até seus nascimentos – primeiro o dela e, depois, o dele.

Estrela por estrela, cada um trouxe o outro para dentro de sua vida.

Meu avô fazia um preâmbulo em que ele explicava que a índia vinha da terra das montanhas de pedra e que o índio tinha antepassados lá, mas eles se mudaram antes que ele nascesse e, agora, sua aldeia era outra, e, em sua aldeia, os índios fabricavam suas próprias montanhas – e ele não via graça alguma nisso.

Dizia a lenda do meu avô que os dois se perceberam par assim que se encontraram e imediatamente se apaixonaram.
Porque era natural que fosse assim e eles eram índios e, para os índios, o mundo é para se olhar e estar de acordo.

Conta a história também que houve um dia em que as duas aldeias se opuseram em guerra e que, nesses tempos de guerra, os dois propunham-se voluntários para fazer a ronda em suas canoas e, assim, encontravam-se em uma ilha para conversar sobre as estrelas que haviam visto e apontavam com seus narizes para as estrelas cadentes e faziam ambos o mesmo pedido, que nunca mudava.
O mundo deles estava em guerra, mas havia paz naquele mundo de estrelas infinitas que os dois compartilhavam.
Houve vezes que os dois juravam ter visto uma flor cada um – flores da mesma cor – desabrochar na mesma manhã.
Ao mesmo tempo, a guerra foi ficando cada vez pior.
Foi ficando cada vez mais difícil e perigoso que os dois se encontrassem.
A saudade fez com que ficassem inconsoláveis e ambos começaram a usar túnicas negras, como se velassem vítimas da guerra.
O nível de água no lago subia noite após noite a ponto do pai da índia dizer a ela que era por causa das lágrimas dela.
“Lágrima o caralho, isso é sangue!”, gritava ela com sangue nos olhos.

Houve um dia, porém, em que o sangue secou todo, ao menos no corpo dela.

Ela acordou e soube que a aldeia de seu-bem amado havia sido atacada durante a noite e que aquela batalha acabara com a guerra e que sua aldeia tinha vencido.
Muitos haviam sido feridos, muitos mais haviam morrido e alguns haviam sido feito prisioneiros.
Ninguém havia escapado.
Ninguém.

Sua vontade era correr o campo de cadáveres até encontrar o lugar apropriado para morrer de amor, mas seu corpo cansado desmoronara.

Chorou durante toda a alvorada e estendeu seu pranto manhã adentro, praguejou durante toda a tarde e, ao fim dela, foi convocada para uma reunião na praça central da aldeia.

Lá, ela soube que sua aldeia acolheu fugitivos da aldeia arrasada e que muitos dos moradores estavam sendo designados a acolher refugiados em suas ocas.

Foi quando ela reconheceu o rosto do refugiado que lhe havia sido designado que seu coração morto viveu outra vez.

Ele, justo ELE!
Estava vivo, estava bem e, embora seu rosto se esforçasse em uma exibição pública de contrariedade, seus olhos lhe sorriam num segredo só deles.

Na primeira noite que passaram juntos, viram o dia clarear, lado a lado. Ela com a cabeça apoiada e acomodada no braço dele, ambos deitados no telhado da cabana, olhando as estrelas com as mãos enlaçadas sobre o peito dele.

No primeiro dia que passaram juntos, conversaram infinitamente sobre as estrelas que viram na noite anterior. Conversaram tanto que as estrelas voltaram e eles voltaram pra cabana e na segunda noite ninguém conversou.

No dia seguinte a esta noite, os dois dormiram o sono dos justos, entrelaçados, enquanto o povo da aldeia falava sobre as estrelas.

Falavam sobre duas estrelas, em particular, que brilhavam em plena luz do dia, conversando sem parar num língua inventada.

Duas estrelas que, apesar de tocarem o chão com as plantas de seus pés, pareciam um só buraco no véu terrestre através do qual se vislumbrava todo o firmamento infinito afora.
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