14.10.08

Ferias de Verão, Por Que Não?




(Para Cássia, com todo o carinho do mundo)

Quando eu tinha uns cinco anos de idade, havia, em meu círculo social, uma mulher mais velha que exercia um determinado fascínio sobre mim. Eu fazia tudo que ela mandava, tomando o maior cuidado pra não errar muito feio. Eu chamava essa mulher de "tia". Você também deve ter tido uma. A minha se chamava Tia Encarnação e ela era a titular da cadeira de ensino do Pré I do Colégio Júlio Pereira Lopes.
Toda vez que as comidas que sobravam da ceia de Natal terminavam de ser infinitamente reaproveitadas e minha mãe me levava pelo braço até o Bazar Progresso pra que eu pudesse escolher um estojo mais bonito que o dos meus amigos (ou pelo menos um que não quebrasse quando fosse jogado de encontro ao ventilador de teto), a dica já estava dada: as aulas iam começar.
Começando as aulas, a gente nunca sabia se ia cair na mesma classe que o resto dos amigos, nunca sabia se iam tirar limpar o depósito de bebidas da cantina e tirar todos os ratos que moravam lá, mas havia uma única coisa que a gente sempre sabia que ia ter: a infame e temível redação "como foram minhas férias".
Os anos passam.
As tias passam a ser professoras, surgem os sutiãs, nascem pêlos num lugares estranhos, as meninas passam a ser mulheres e ninguém mais pergunta como suas férias foram.
Crescer é isso aí.
É parar de perguntar e deixar de responder.
Antes que você me acuse de alguma coisa: como foram suas férias?
Sim... É com você mesmo.
Você tem meu e-mail.
É só responder.
Por férias, você pode entender "como foi de festas", já que não é todo mundo que tem férias nesta época do ano. Diz pra mim o que você bebeu, o que você vomitou, quem você beijou, quem você queria ter beijado e em qual das sete ondinhas você caiu na água, levando uma rasteira de uma malvada garrafa de champanhe de quinta categoria
Eu, daqui do meu canto sombrio, passei o Reveillon em Ilhabela.
Terceiro ano seguido.
Pela primeira vez, consigo ficar dez dias longe de São Paulo. Acho que a última vez que fiz isso foi em 98, quando fui pra Brasília, trabalhando em uma matéria sobre o Renato Russo.
Fiquei triste pra cacete quando soube que a Cássia tinha morrido. Demorei e me recusei a acreditar. Só caiu a ficha mesmo quando o apresentador de uma festa que rolou na praia do Curral disse que ia tocar "Malandragem", em homenagem a ela. Doeu principalmente porque, no ano passado, tinha falado com ela logo depois do show que fez no Rock In Rio. Não vi o show dela lá no Rio, mas tinha visto o que ela fez no Parque do Ibirapuera, ao lado da Zélia Duncan. Foi do caralho. E eu disse isso pra ela. Porque tinha sido mesmo. Ele ficou sem graça como uma garotinha, estendeu os braços e me deu uma abração. Quando finalmente eu descobri que ela tinha morrido mesmo, foi desse abraço - e do sorriso que veio junto com ele - que eu lembrei primeiro.
Doeu, mas passou.
Tem que passar.
Senão, deixa de ser tristeza e passa a ser show-room de dor.
Foi o que uma das meninas que foi para Ilhabela com a gente acabou fazendo. Assim que o cara da festa começou a tocar "Malandragem", ela começou a berrar pra todos que estivesse à sua volta: "É Cássia Eller! É sim! Eu vou chorar! Eu vou chorar! EU VOU CHORAR!!!".
A primeira a dizer alguma coisa foi minha irmã. Tinha que ser ela mesmo, porque ela é quem foi agarrada pela manga da blusa e chacoalhada pela garota histérica do mesmo jeito que cachorros chacoalham as roupas que roubam do varal. Suas palavras, graves, foram "então chora!".
A garota não chorou.
Também não parou de chacoalhar pessoas.
Virou para uma outra garota do lado dela e começou com a mesma coisa. A reação foi parecida e talvez até um pouco mais agressiva. E o ritual continuou enquanto a música durou.
Sei que meu papel aqui - e em nenhum outro lugar - não é o dizer o quanto de dor você está sentindo.
Mas é exatamente num momento desses que eu fujo do meu papel e digo: se for pra sentir dor, sinta uma dor que seja tua. Não venha com essa dor que você acha que deve sentir, porque eu não acho que devo manifestar pesar por ela. Manifesto pela minha, sem impingir minha dor a ninguém.
Repito, porque o que é dito uma vez só é dito quase nunca: dor tem que passar pra não correr o risco de virar show-room de dor.
Toda dor, ou é sua dor, ou é fingimento e descaso.
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4 comentários:

Renatinha disse...

Que leitora relapsa que sou... Mas quando apareço por aqui, vejo um texto deste, um tapa na cara.
Lindo!
beijo
Re

Anônimo disse...

Hum... bacana esse post. Pena que nem todo mundo pense assim. Um otimo texto, um tapa na cara, mas so entende quem sentiu (e sente) dor de verdade.
Beijao!

Kakaya disse...

Lindo!

Stephanie disse...

há quem pense 'que fingir a dor que deveras sente' seja poético. Como se tivesse que haver regra, sintomas, códigos pra provar a própria dor

eu tinha ouvido no rádio que Cássia morreu a caminho do aeroporto, não acreditei, fui ter certeza só depois de ter pousado noutra cidade - e as notícias pareciam não fazer o menor sentido, mas o acústico na mala acabou virando trilha de uma das minhas melhores férias.