16.3.09

Ganhando cicatrizes Parte IV (ou: Pai Herói)




Lembro de pouca coisa desse dia e, hoje, falando com meu pai, ficou evidente o porquê.
Isso aconteceu em 10 de julho de 1976.
Eu ia fazer três anos em um mês e dez dias.
Minha mãe ainda estava grávida do meu irmão, que nasceu um dia antes do meu aniversário.
Isso também explica porque meu irmão não lembra de nada sobre esse dia em que eu meti minha mão dentro de uma máquina de moer cana e quase perdi um ou outro dedo.

Se existe alguém que sabe contar essa história, esse alguém é José Nelson Tucori.

Foi essa história ele que me contou hoje de manhã.
Se meu avô era a personificação na arte de contar histórias, meu pai é de uma precisão (sem trocadilhos) cirúrgica.
Ele conta a história inteira, te ambienta em tudo e vai direto a todos os pontos que são importantes.
Ele é médico, otorrinolaringologista, visto com um respeito quase reverencial por todas as pessoas que já trabalharam com ele.

Como se isso tudo não bastasse, o senso de humor dele é sensacional.

Por exemplo: quando me contou isso, ele disse assim pra mim: “vai lá, chega bem perto da sua mãe e diz assim: ‘vê se ele ainda tá respirando’”.
Minha mãe tava tomando banho e eu falei essa frase, exatamente do jeito e no tom que ele me disse, com a boca grudada na fresta da porta do banheiro.
Meu pai disse que, quando ele ia dirigindo pro hospital, comigo desacordado no banco de trás, ele pediu pra que ela fizesse isso, que fosse ver se eu ainda estava respirando.
Ele disse isso pra ela como médico, mas, naquele dia, ela – com um filho sangrando no banco de trás e outro chutando dentro da barriga – ela era mais mãe que nunca e quase teve um treco.
Hoje ele disse isso como um marido, casado faz quase 37 anos.
E ela quase teve um treco outra vez.

Pelo que o meu pai conta, naquela época a lei ainda não tinha proibido que se queimasse canaviais. A gente estava na fazenda em que o tio Alexandrinho – que merece um post à parte – trabalhava, em São Sebastião da Grama, divisa de São Paulo com Minas Gerais.
Naquele dia, ele e o Zé Plaza resolveram que ia ter refresco depois da janta. Pra isso, eles se embrenharam no canavial e vieram arrastando a cana pra levar até o moedor. O povo da fazenda tinha queimado o mato do canavial, então, os dois saíram de lá pretos de fuligem.
Não sei como é que eu fui parar lá, mas sei que, quando os dois estavam moendo cana, achei que podia ajudar.
O Plaza tava fazendo a roda do moedor girar, enquanto meu pai empurrava a cana pra dentro dele. Parecia simples até pra uma criança de dois anos e onze meses.
Tudo que eu lembro era isso, que eu achava que podia ajudar e ia tentando do jeito que dava.

Vi que o Plaza ia girando uma roda e que, por causa disso, a cana era mastigada pela máquina.
Eu não tinha nem bem três anos e, mesmo que tivesse, não ia fazer diferença.
Pra mim, aquela roda que girava sozinha do lado de cá, onde eu estava, era muito mais fascinante.
Ela era toda dentada, cheia de graxa, preta e brilhante.
Foi ali que eu botei a mão.

Tinha certeza: aquilo ia ajudar.

Minha mão entrou entre as duas engrenagens e a roda travou.

Foi por pouco tempo, porque o Plaza achou que aquilo era porque a cana tinha enroscado em algum canto e, aí, ele fez a roda girar mais forte.

Foi só aí, quando aquele monte de ferro todo mastigou os quatro dedos da minha mão esquerda, que eu comecei a urrar de dor.

Lembro da luz, lembro do horror que a dor causava e lembro do meu pai me abraçando pelas costas, puxando minha mão pra fora aquilo, enquanto o Plaza girava a roda no sentido contrário pra facilitar.

Meu pai diz que não quis nem ver o que estava acontecendo e imediatamente parou de agir como pai e passou a agir como médico que era.

Sem pruridos de corinthiano, embrulhou minha mão numa flanela do Palmeiras e tratou de me levar correndo pro hospital mais próximo, que eram em Poços de Caldas.

Ele me deu meio comprimido de um composto de analgésico que eles usavam na Santa Casa daqui de São Paulo - que era um dos três lugares em que meu pai trabalhava na época – e eu apaguei grande.

Tanto é assim, que eu não lembro de picas do que aconteceu.

Na época, meus pais tinham uma Variant verde piscina. Minha mãe foi no banco do passageiro, grávida de 8 meses do meu irmão e meu pai fez aquela Variant voar de tal maneira até a Santa Casa de Poços, que o Plaza, que vinha seguindo a gente, só chegou lá dez minutos depois.

No hospital, aconteceu o que sempre acontece: todos os médicos estavam ocupados e ninguém poderia atender a gente. Meu pai, todo preto de fuligem de canavial, respirou fundo, abriu a carteira, mostrou o CRM dele e disse: “prepara uma mesa então porque eu vou suturar a mão dele”.

Sob protesto, arrumaram um anestesista pra ele e ele foi pra mesa.

Aos poucos, os médicos que trabalhavam lá foram se juntando pra ver o que estava acontecendo. Meu pai, calado, ia fazendo o que tinha que ser feito.
Pediu radiografia, escolheu a linha pra dar ponto, arrancou as unhas todas, que tinham ficado imprestáveis e costurou os ligamentos dos dedos que tinham se fodido.
Quando veio a radiografia, veio junto um alívio – eu não tinha quebrado um único osso dos dedos, o que era o equivalente a um milagre.

Quando voltei pra fazenda, o Zé Ricardo ficava dizendo que eu tava com “mão de bandido” e eu dava risada e passei a dizer pra todas as pessoas que tinha um bandido na minha mão.
Por não ter quebrado nenhum osso, a recuperação até que foi rápida e não foi nem um pouco traumática.
Foi tirar os pontos, trocar o “bandido” e, depois, vida normal.

Vida normal, pelo menos, pra uma criança de três anos, com um irmão recém-nascido e mal sabendo o que Deus reservava pra ele nos outros 32 anos de sua vida até aqui.

Se bem que, quando se tem um pai como José Nelson Tucori, Deus tem bem menos trabalho com você.
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2 comentários:

Joice Viana disse...

Como eu disse ontem, antes da Velox me passar uma rasteira e me derrubar pra sempre até hoje de manhã, ficou lindo o post, seu pai vai adorar. Apesar de que cada vez que eu leio me encolho mais na cadeira e minha mão já tá até doendo em solidariedade.
A foto tá genial também hahahaha

=*

Calu Baroncelli disse...

cara, essa foto é bem foto de pai do Fernando Tucori, não poderia existir careta melhor para expressar a copa desta árvore genealógica...