7.7.08

A Eviternidade do Sorriso Sem Riso



Rizzieri Tuccori é o nome dele. Nome que as pessoas erram o tempo todo. Chamam de algo parecido com ricério. E isso meio que diz o máximo num mínimo sobre o Rizzieri Tuccori.
Ele tem seu super-poder.
Ele ri.
Sério.
A risada do meu avô é uma coisa que mal abre a boca, fina, parecida com a risada do Popeye. O que eu não sei é se é ele que ri de um mundo sério ou se é ele que tenta ficar sério em um mundo cômico, mas o sorriso está lá. É a melhor ressonância de riso que eu já vi em ação. Ele se espalha. Basta um "he!" dele na cabeceira da mesa de jantar: em questão de segundos, minha irmã pode engasgar de rir e cravar um caroço de azeitona na parede perpendicular e oposta.
Ele é capaz de olhar pra você e sorrir, sem mexer um único músculo da face.
Ele fez isso quando me falou sobre o navio de sal que afundou e fez o mar ficar salgado.
Ele é um homem que ri sério.
Porque rir é coisa séria.
Você sabe jogar truco?
Meu avô sabe.
Não que ele saiba: ele dá aula. Você imagina o tanto quanto um sujeito que ri sério pode saber blefar jogando truco. Tem uma coisa engraçada sobre o meu avô jogando truco. Eu nunca joguei contra ele. Agora, isso é meio que claro pra mim, mas nunca antes tinha sido. Ele nunca jogou truco contra mim. Jogamos sempre, os dois, no mesmo time. E sempre ganhamos. Peraí... Ele sempre ganha: apesar de, às vezes, eu aparentar ter outros planos. Caso sério: em uma mão, ele chegou a me convencer, de verdade, que eu tinha uma carta bem maior do que eu realmente tinha. E eu acreditei nele e duvidei dos meus próprios olhos. Não é que ele saiba blefar. Ele sabe, inclusive, blefar por mim. Não: ele blefa através de mim. Eu não preciso fazer nada. Ele é o pior jogador pra se ter como adversário. Ele não só sabe ganhar, como sabe perfeitamente o que fazer pra tirar completamente o mérito da vitória dos outros. Ele nem nota, como se aquilo fosse pouco e que, agora ou daqui a pouco, ele dá a volta por cima. E ele dá.
Isso é que é impressionante: ele sabe o que fazer. Aliás, ele sabe o que fazer sempre. Na hora em que é preciso fazer, que é a última hora. Ele está onde sempre esteve, no ambiente natural dele, um lugar sombrio de tão claro e caótico de tão simples.
Um lugar chamado "agora".
E aí, parece tudo combinado.
Minha avó e meu avô são meus padrinhos de batismo. Formam um casal engraçado esses dois. Embora comigo, seu afilhado, minha avó seja um amor, com o meu avô existe uma relação que eu nem ouso tocar. A impressão que me dá é que eles estão em outro nível.
Eles já combinaram tudo.
Mesmo quando ela ralha com ele porque ele falou uma abobrinha num lugar, digamos, incomum... Mesmo quando ela quer contar a história toda e não deixa ele contar... Mesmo quando ela cisma com algum defeito mínimo na conduta dele... Mesmo. Mesmo assim, parece que é combinado, que aquilo tudo quer dizer "te amo", que quer dizer alguma outra ainda mais profunda, ainda mais intensa e ainda mais adorável que "te amo". Não existe outro meio. Eles combinaram tudo antes, antes que eu nascesse. Antes mesmo que meu pai nascesse. Ela impõe uma rotina, metódica, programada e capricorniana. E lá vai aquele homem, rindo, mas sério. Acho que ele aprendeu alguma coisa com a rigidez da minha avó. Às vezes, parece que estou vendo aquele homem dançar, quase sem olhar, em cima dos pedaços firmes de concreto, que é a rotina da minha avó.
Primeiro e um, depois em outro, depois e mais outro e o baile nunca termina.
Ela está pronta por antecedência e ele, pronto pro improviso.
Não tem como falhar.
Aposto: eles combinaram.
Ou isso, ou ele está jogando truco com ela e ninguém percebe.
Todo ano, eles vão, tantas vezes quantas forem possíveis, para Poços de Caldas. É o santuário deles. Todo mundo conhece os dois por lá. Minha avó fica no saguão do hotel contando todas as histórias que consegue lembrar e meu avô escuta.
Não tem nenhum caráter de vingança naquilo que ele faz depois, mas o que ele faz é genial: se eu fosse me vingar de alguém que despejou papo-furado na minha orelha por horas a fio, acho que me vingaria assim. Depois que o papo acaba, ele pega alguém - sorte minha quando sou eu - e conta tudo, em menos de meia hora, daquilo que ouviu. Todas as partes mais legais, com todas as voltas da história, sem pressa nenhuma, de um jeito que você - sem que ele precise falar - vai reconhecer a pessoa que contou a história, mais tarde, quando cruzar com ela no elevador ou em qualquer outro lugar. E você vai querer rir, mas não vai poder. E vai ser obrigado a rir.
Só que sério.
Você aprende...
Na semana passada, ele foi operado.
Tinha pólipos na bexiga.
Eu não ouvia falar de pólipos desde as aulas de acentuação em gramática da tia Cida, na terceira série do Centro Educacional Júlio Pereira Lopes. Pólipos, é claro, sempre são acentuados, porque são proparoxítonos. Isso não explicava, entretanto, de que maneira o fato de serem proparoxítonos poderia dar aos pólipos o direito de estar na bexiga do meu avô.
Aí, ele acorda da cirurgia, passado o efeito da anestesia, e o médico pergunta: "Tem alguma coisa que o senhor queira saber sobre a cirurgia? Alguma dúvida que o senhor precise tirar?". Ele estala a língua por dentro da boca, levanta os olhos e manda: "quando eu vou poder ir pra Poços de Caldas?".
Eu sei.
Você sabe.
Ele ri.
Sério.

Dedicada a memória de Rizzieri Tuccori (06/06/1915 - 28/11/2007)
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6 comentários:

Unknown disse...

É como se ele estivesse vendo tudo de um degrau acima do nosso, e rindo das preocupações cotidianas. E pequenas. Em vida.

Seu avô deve ter sido uma pessoa incrível. E pessoas incríveis não morrem, viram estrelas. É só uma transmissão do brilho que possuem: do corpo físico para o corpo celeste.

E se imortalizam no coração daqueles que, um dia, vão virar estrelas também.

Anônimo disse...

Cadê o post das músicas???

M. disse...

Pra você, baby:

http://www.4shared.com/file/36765286/3b007ed5/Hooverphonic_-_Mad_About_You.html

Joice Viana disse...

'Ou isso, ou ele está jogando truco com ela e ninguém percebe.'
Hahahahaha adorei (L)

Sério, o texto tão bom demais, você deveria ir dormir às 4 am mais vezes.

Desculpa o comentário raso, mas avôs me fazem chorar de soluçar e eu já desidratei ontem...

Beijo³

Joice Viana disse...

E eu quis dizer 'tá' ¬¬'

Joice Viana disse...

Se eu falar que não vi a data tu não acredita né? Tipo quando Gtalk mete o link sozinho lá no meio e eu acho que foi você? Isso sou eu tentando provar meu autismo severo pro mundo ¬¬'