Como ter espírito de aventura mesmo tendo sangue de barata
Era segunda-feira e eu tava trabalhando em casa.
Na época, eu morava na casa dos meus pais, perto da represa Guarapiranga.
Do nada, o Igor me liga e diz que vai fazer coleta de insetos na ilha na represa.
Ilha?
Queria saber se eu não tava a fim de ir com ele pra ilha e eu, por acaso, tava a fim de ir sim.
Nem tanto porque eu sabia o que ia ser, mas muito mais pelo exato contrário.
Eu não esperava nada, não imaginava nada e nem sabia o que seria preciso fazer pra chegar lá...
E foi assim que eu fui.
Comecei a descobrir quando, na margem de cá, baixei os olhos para aquela que seria a minha embarcação:
um caiaque aberto, com um buraco no rabo, mal e porcamente tapado por um band-aid de silver-tape vermelho (silver-tape não teria que ser prateado?).
Um caiaque que, sem discussão alguma, me provou por a + b que eu tô completamente fora de forma.
Traje a rigor: tava de calça de moletom, enrolada até a altura do joelho.
No meio da jornada, isso me daria uma visão aterrorizante das minhas pernas, tremelicantes e cinzentas, encolhidas como um cachorro doente aterrorizado com barulho dos trovões.
Aqui e agora, seguro e em terra, não dá pra ser muito claro a respeito da sensação que tive de que, a qualquer momento, poderia ter uma síncope lá no meio e afundar que nem um tijolo.
Tinha a certeza virtual de que não ia conseguir chegar na outra borda.
Se você olhasse pra mim você teria essa mesma sensação.
O Igor teve e, vez ou outra, me perguntava se estava tudo bem.
Claro que não estava, mas havia uma esperança distante de que ia ficar tudo bem sim.
Tão distante quanto a margem do outro lado.
Só que a simples sugestão de ficar ali, parado sobre a água, me fazia tremer e, nesses ataques de tremedeira, o caiaque balançava como que sugerindo duas opções e, entre virar ali e chegar do outro lado morto, preferi chegar do outro lado morto.
Foi por isso - só por isso, acho - que cheguei do outro lado.
Morto.
Devo ter desembarcado uns duzentos metros do lugar certo pra desembarcar.
De longe, o Igor berrava uns "aí não, vem pra cá", que eu fingia não ouvir pra não ter que mandar ele ralar o cu nas pedras.
Cheguei, desabei de bunda no chão e sentei.
Ofeguei, ofeguei e ofeguei.
Bufei, bufei e bufei.
Respire fundo, mais fundo e muito mais fundo.
Só quando tive certeza absoluta de que não ia mais morrer, fiquei de pé outra vez.
Porém, fiz isso de um jeito tão incerto que parecia que minhas pernas tinham sido projetadas pela equipe por Sérgio Naya.
Parecendo um mamulengo do carnaval de rua de Olinda, caminhei - em marcha beeeeeem lenta - até onde o Igor e a Carô (a namorada dele na época) para perguntar se eles achavam melhor eu levar o caiaque até lá.
Claro que eu sabia a resposta, mas o tempo de ir até lá fazer a pergunta me foi precioso para a recuperação da parte das minhas funções motoras sem as quais eu não só não conseguiria carregar o caiaque, mas também não conseguiria fazer o meu tradicional número mongol de dança para afugentar maus espíritos.
A gente escondeu os barcos onde o mato era mais alto e partiu ao trabalho.
Enquanto o Igor se embrenhava no mato, a Carô e eu tínhamos coisa pra fazer ali, na beiradinha.
Fomos ver massinhas nas árvores.
Não são árvores que dão massinha como frutos, que fique claro.
As massinhas foram colocadas lá por alguém completamente sem noção - o Igor - o que deixou a tarefa de encontrá-las bem mais penosa.
Havia três cores diferentes de massinhas, que tinha alguma coisa a ver com a cor que não se deve ter pra um predador não te pegar.
Fiquei imaginando o Predador, do filme, ali, naquelas árvores, olhando pra nós e vendo apenas borrões de luz.
Será que há luz em mim, Predador?
Por favor, me diga...
Pois sim: não.
Escureceu e, com a escuridão, vieram os primeiros sujeitos de barco querendo saber quem éramos e o que fazíamos com lanternas por lá.
Pescadores: um velho, um moleque e um barco montado em cima de um estrado de cama.
Os pescadores eram crentes tementes a Deus e estavam com medo de que nós fôssemos, além de pescadores, pecadores e que estivéssemos a fim de roubar as redes e os peixes deles. Como diabos, perguntei, eu ia poder roubar a rede deles se meu caiaque não tinha nenhum disposito wi-fi?
Falei com eles enquanto a Carô se escondia e procurava o facão, que o Igor tinha levado em sua jornada mata adentro.
Tudo bem: convenci os dois que eu que eu não era hacker, nem pescador e que estava lá para verificar a presença de alienígenas na mata.
Posso não ser pescador, mas, como pecador, jamais perderia uma oportunidade de criar uma lenda urbana com as próprias mãos.
Eles foram embora.
Catamos todas - ou quase todas - as massinhas.
Fomos xingando o Igor que não marca as árvores direito.
Xingando o Igor por ele ser o Igor.
Xingando o Igor porque ele não tava lá.
E xingando o Igor, sobretudo, porque seria indelicado se ficássemos, Carô e eu, xingando um a outro sem motivo nenhum.
Olhava pras minhas canelas sem meias, frias e pensava no tanto de trabalho que aquilo ainda poderia me render na longa jornada mata adentro.
Quando a Carô viu que eu estava sem meias, com camisa de abotoar e com tênis de futebol de salão, ela teve a mesma impressão que eu e, embora não tenha dito nada, eu li nos olhos dela que eu ia me foder de um jeito inesquecível.
Acabei me distraindo com penas.
Tudo vale a pena se a alma não é pequena e aquelas penas eram de aves imensas - garças, mergulhões, urubus, irerês, abutres.
Lá era a casa delas - não a nossa.
Eu quis pegar algumas pra ver se conseguia instalar cargas de canetas bic dentro delas, mas esqueci a maioria lá e, aquelas que eu não esqueci, perdi no caminho de volta.
Salvei apenas uma que a Mona, cachorra do Igor, comeu sem piedade assim que chegamos.
As garças fazem barulhos hilários.
Parece que tem um monte de porco em cima de cada árvore, embora eu trema diante de qualquer possibilidade logística de se colocar porcos em cima de árvores a não ser que eles virem músicas do Pink Floyd e voem. Ou caiam de lá sejam transformados em cheese-bacon antes de tocar o solo
É um barulho muito engraçado desde que você não entre no mato.
E nós entramos.
Lá, entre as árvores, o barulho é assustador.
Não só quando as aves fazem aquilo que poderia ser considerado algo parecido com "cantar", que mais se parece com uma risada satânica, mas mais ainda quando elas batem aquelas poderosas asas.
É nessa hora que você é capaz de jurar que uma ave de 30 centímetros e, na real, um ptedodáctilo de 3 toneladas.
De qualquer maneira, pedi educadamente para que o resto de mim não entrasse em pânico convulsivo e jurei que não gritaria mesmo que coisas roçassem minhas canelas.
Quando a noite fechou de vez e a mata já havia se fechado em torno de nós há tempos, eu já havia deixado de viadagem e me divertia catando e perdendo aranhas que, por terem quatro patas a mais que eu, eram muito, muito mais rápidas.
Certo...
A gente classifica aranha em "venenosa" e "não venenosa", mas...
Como é que uma aranha classifica a gente?
Como "humanos"?
Talvez como o equivalente genérico "macacos", uma vez que lá tem mais macacos que gente.
Nós éramos da espécie de macacos que enfiava as aranhas em vidros cheios de álcool até que elas fechassem as pernas e morressem.
Nós éramos frios, cruéis e sanguinários, mas estávamos a serviço da biologia.
Mesmo assim, de alguma maneira, éramos venenosos.
O álcool, porém, era bem mais venenoso.
As aranhas percebiam isso a primeiro contato.
Os humanos, entretanto, nem tanto.
Felizmente, só achei uma única aranha grande.
Fiquei com tanto medo que a Carô veio pegar ela pra mim.
Embora houvesse uma competição divertida entre ela e o Igor, era claro e evidente que eu era café com leite.
No entanto, naquele momento, o café foi embora.
A aranha era do tamanho de uma palma aberta e eu fiquei branco que nem leite até ter certeza absoluta que a Carô tinha colocado MESMO a aranha no vidro com álcool. Por pura precaução, dali pra frente decidi não encontrar mais nenhuma aranha maior que a unha do meu dedão.
A gente ia com lanternas de cabeça, o que era bom naquele momento escuro da noite, mas tinha também a sua parte ruim.
A parte ruim é que as luzes atraiam mariposas tão gordas como o cadáver de Marlon Brando.
Quando a luz da lanterna batia nelas, reluzido diabólicos olhos VERMELHOS, elas voavam na direção da luz - que, por acaso, estava instalada na MINHA TESTA. - e batiam na minha cara, tentavam pousar no meu rosto e ameaçavam entra na boca...
E não saberia dizer qual era o meu maior medo até aquele momento, mas mariposas me deram relativa folga.
A Carô deu um tapa em uma que, quando bateu num toco de árvore, fez um "tôc" seco e hediondo que deu uma noção bem razoável do seu tamanho e peso.
Às vezes, eu olhava em volta e tinha certeza: aquele era o lugar ideal para o Jason aparecer e matar todos nós e, como eu sempre ficava pra trás, era no meu peito que o alvo estaria pintado.
Não era exatamente Jason a criatura mais interessada em sangue por ali.
Fui descobrir isso mais tarde, depois da jornada de volta.
A jornada de volta...
Imagine você que eu já tinha me fodido o bastante indo pra ter medo da volta.
Só que, subitamente, uma coragem se elevou acima das minhas expectativas e fez com que eu avançasse bravamente em remadas firmes e decididas.
Se a gente aprende com os erros, aquela era a prova cabal.
A gente só precisa do tipo certo de motivação.
Os trovões que ribombavam em todas as direções, o vento que arrancava folhas das árvores e crispava a superfície da água mostravam ser o tipo exato de motivação que eu precisava.
Cheguei, inclusive a abrir uma vantagem fenomenal sobre a canoa do Igor e da Carô, mas na direção errada e, se eles não tivessem me corrigido a tempo, eu teria espatifado o caiaque nas pedras da margem uma outra ilha que a escuridão da noite escondia..
Com o temporal se armando, Tucorix, o gaulês, temia como nunca que o céu lhe desabasse sobre a cabeça como, de fato, acabou por desabar, mas só no momento em que aos bicos dos dois barcos tocaram a margem de onde havíamos originalmente partido.
Quando a gente chegou na casa do Igor pra descarregar os barcos, havia em mim uma euforia fantástica por causa da aventura em que havia e metido em plena segunda-feira.
Eu me coçava pra arrumar alguém pra quem eu pudesse contar aquilo.
Não sabia ao certo pra quem contar, mas era uma certeza:
eu me coçava.
Já em casa, durante o banho, a ordem de percepção foi a seguinte:
1º movimento) "Essa pinta não estava aqui"
2º movimento)- "Essa pinta também não estava aqui"
3º movimento)- "Caramba... Quanta pinta nova"
4º movimento)- "Eppur si mouve! Essa pinta aqui andou..."
5º movimento)- "Nossa... essa pinta coça!"
6º movimento) - "Caralho! Quanto CARRAPATO!!!"
Pois sim...
A contagem inicial - que não incluiu aqueles que escorreram pelo ralo com a água do banho, nem os que ficaram na minha roupa, nem os que o Igor e a Carô tirariam das minhas costas depois - contabilizou 41 carrapatos enfileirados em cima do sabonete branco.
Em meu corpo ficaram calombos que, depois que o inchaço passou, viraram machucados maiores que toda a família do carrapato que arranquei dali.
Muitos anos atrás, quando minha irmã nem tinha nascido ainda e a cama do meu irmão ainda se chamava "berço", eu me extraviei no meio da plantação de café de uma fazenda onde minha família costumava ir passar as férias e voltei cheio de carrapatos.
Essa é uma daquelas histórias que aconteceram quando eu era tão pequeno que, pra lembrar, preciso usar a memória dos meus pais.
Eles dizem que, no meio da noite, eu acordei e disse num tom choroso:
"Acho que aqueles bichinhos que comem a gente até a gente virar caveira estão comendo meu saco".
Quando eles foram ver, meu saco parecia um morango: vermelho e cheio de sementinhas pretas.
As sementinhas pretas, claro, eram carrapatos que foram cuidadosamente retirados com alfinetes quentes, pra que eu não ficasse com esses machucados que fiquei depois dessa aventura pela ilha.
Por isso, do fundo do meu coração, agradeço aos meus pais por terem tido o cuidado e a paciência de agüentar o meu choro insano e um ou outro pontapé repentino (como aquele que derrubou a vovó) enquanto eles extraíam aqueles carrapatos escrotos do meu saco.
Não fosse por isso, juro:
eu não teria saco pra contar essa história hoje.
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