19.6.08

Blues pela mulher que não vai mais voltar



Hoje, no carro, escutava uma bela música.
Ela se chama "I Miss You" e é do Harold Melvin.
Ele acompanhado pelos Bluenotes de sempre.
Soul music dolorida, que chora, lamenta e grita.
Blues de desesperado.
Estado terminal.
Amém.

Enquanto o vocalista se esgoela, com a garganta em carne viva,
um segundo vocal simula uma conversa telefônica que começa assim:
"Oi, desculpa estar ligando... Eu perturbo você?".

Esse verbo: "perturbar".

Veja bem: não é incomodar,
não é atrapalhar,
mas poderia ser.
Só seria, se o verbo "perturbar" não trouxesse essa sensação de que alguém entrou no seu mundo, sem sua permissão, zoneou completamente suas coisas, alterou o ritmo da sua respiração e foi embora sem mais nem menos.

Talvez, em outras circunstâncias, essa pessoa que tanto te perturba pudesse ficar - quem sabe, tivesse que ficar - e tampouco precisasse pedir permissão.

Porém, alguma coisa muda.
Talvez o tempo...
De repente, tudo vira desculpa...
E desculpas não adiantam.
Porque, as vezes, ninguém tem culpa.

Pode ser,
mas eu acho que não.

Essa sensação perturbadora foi se espalhando, se espalhando, até que minha cabeça fez o favor de formular uma pergunta.
Dois pontos, pula linha, abre aspas, travessão, hey-ho-let's-go!, para quem eu faria uma música dessas?Não...
Não foi nem isso.
Foi:
"-Eu teria para quem escrever uma música dessas?"

Wham-bam, thank you,man!

Rápida, como um choque, a resposta fez meus braços tremerem no volante:

Renata.

Foi uma história que começou meio por acidente.
Ela se apaixonou por um amigo meu e eu fui,
durante um tempo, uma espécie de confidente.
Sim, durante um tempo, porque, depois desse tempo,
o ciúme já não lutava tanto para se manter insuspeito.
Aí, a gente saiu pra conversar uma vez,
porque eu precisava falar com ela e ela precisava falar comigo.

Saímos.

Missão dela: dizer que uma amiga dela estava a fim de mim.
Minha missão: esconder que estava a fim dela e que não tava nem aí pra nenhuma amiga dela, fosse quem fosse.

No final, acabou que nós dois fracassamos.

Eu mais, ela menos.

Eu disse - com todas as letras, de fôrma e maiúsculas - que estava cada vez mais apaixonado por ela.
Ela, por sua vez, contou que a amiga dela estava a fim de ficar comigo.

A missão dela estaria cumprida e bem sucedida...
não fosse o fato de que, antes disso, ela disse, também,
que estava apaixonada por mim.

Em respeito a amiga,
não houve um beijo sequer naquela noite.

Ao invés disso,
conversamos por oito horas seguidas,
sem bar, sem mesa, sem parar, nem nada.

Éramos só nós dois e um carro.

Um fiat uno cinza que mudou de lugar por toda a noite.
Estivemos em todos os lugares mais perigosos do eixo Aclimação/Vila Mariana.

Estávamos tão absortos em nós mesmos,
tão felizes em estar ali,
ela com cabeça no meu colo e, depois, eu com a cabeça no colo dela,
falando sobre tudo, falando sobre nada.
Nada podia atingir a gente.
Nada - só nós mesmos.

Tivemos outras oportunidades, mas éramos bonzinhos demais.
Não quisemos machucar ex-namorados, ex-namoradas, nem ninguém.
Só queríamos ficar juntos e livres de todo o resto.
Um dia ela me chamou pra conversar e disse que
nós
estávamos
nos
precipitando.

Nós?

Ali, na minha frente,
o grande amor da minha vida,
que eu nunca beijei,
dizia que NÓS estavamos nos PRECIPITANDO...
Sim... CLARO!

Essa foi a reação que ficou estampada nas minhas retinas,
empalhada, lá no fundo, enquanto minha boca balbuciava algo como:
"você tem toda a razão"
ou alguma outra barbaridade sem sentido.

Olhando pra trás no espelho retrovisor, tinha um caminhão.
Foi quando percebi que olhando pra trás, na minha vida,
foram poucos os momentos de que posso me lembrar em que tenha sido tão categoricamente idiota como naquele dia.
Naquele dia eu fui um perfeito idiota, sorrindo,
como um homenzinho que dança agradecendo pela chuva pra, segundos depois,
ser esmagado por uma onda de dezesseis toneladas,
vinda da represa,
que arrebentou,
por causa da porra da chuva.

A onda que me acertaria a cabeça pouco depois era a notícia de que a Renata estava partindo para ir morar nos Estados Unidos.
Quando fiquei sabendo disso,
o chão desapareceu de tal forma que decidi fazer a coisa mais normal do mundo: fui ver minhas notas.
Sim, seria normal se as provas não fossem começar na semana seguinte.

O Cérbero abanava seus oito rabos quando passei pelos portões de Hades.
O pior e mais secreto porre de toda minha vida
foi no final de semana imediatamente seguinte.

Se alguém me pergunta porque passei nove anos sem beber cerveja, nunca digo que foi por causa disso.

Todo teórico do alcoolismo sabe:
o pior de todos os porres é aquele que você toma sozinho.

Foi naquela noite de auto-flagelação estupida em que, meticulosamente,
afastei qualquer possibilidade de resgate e ofereci minha garganta
a todos os meus demônios mais íntimos.
Todos eles.
Não faltou nenhum.

E ela se foi.
E eu fiquei.

Sustentado a pose de quem só sabia o que me era permitido saber.

Alguns dos textos mais lindos que eu escrevi naqueles seis meses, foram para ela.
Nunca alguém esteve tão presente em dedicatórias de margem de caderno quanto a Renata.
As vezes nem aparecia.
As vezes tinha só um desenho que dizia isso sem palavras, "é pra Rê".
As vezes, nem parecia nada.
Era assim porque eu sabia que ninguém, além dela, poderia estar lá.

No começo do ano seguinte, ela voltou.
Mais uma vez, por acidente, a gente se encontrou na porta da faculdade.
Ela estava linda como sempre.
Claro: dizia que estava gorda.
Linda como nunca.
Usava calça jeans e uma camisa branca.
Um dos botões, aquele que separa o "quase tudo" do "quase nada", tinha desabotoado.
Lembra daquele verbo "perturbar" da música do Harold Melvin?
Ele mesmo.

As palavras foram doces como sempre foram.
Ela disse que ia voltar e voltou.
De repente, estávamos namorando...
ei...
Esta não é uma história feliz, lembra?
Pois sim.
Eu namorava a Menina do Nariz de Borracha.
A Rê tava com um cara legal.
Eu era legal com ele e, de certa forma, tinha que ser.
Talvez por ter passado por momentos de estresse desnecessários com ex-namorados selvagens dela,
resolvi que tinha que dar pra ela justamente o contrário.

Sei lá...

Achei que, assim, talvez, aquele beijo latente tomasse seu lugar de direito.
Tivemos uma única conversa, nós três, e foi sobre o cabelo dela.
Conhecia a Rê melhor que ele.
O fato de ter resolvido a coisa em duas frases talvez provasse que eu e ela falávamos a mesma língua sempre.
E provou.
Mais uma vez, provei só pra mim.

Ela mudou pra noite.

Eu fiz o mesmo, meses depois.
(Por acidente, teria que trabalhar de manhã)

Como um recurso de tragicomédia barata,
ela trancou a faculdade pra nunca mais voltar.

Pra mim, era o fim.
Mesmo assim, resolvi telefonar de vez em quando.
Sempre foi bom...

Foi bom, inclusive, quando encontrei com ela na correria para furar fila no show dos Stones, no Ibirapuera, ambos acompanhados.
Breve como foi nosso encontro, tive a breve certeza de que ignoramos nossos acompanhantes por breves instantes e fomos praquele mesmo mundo que a gente criou, deitado com a cabeça no colo do outro, no uno cinza dela.

Depois, conversamos raras vezes.
Escrevi cartas e cartas que nunca enviei.
Poemas, letras de música sem música, músicas sem letra, desenhos, quadros, pinturas... tudo.
Ninguém, nunca, me inspirou tanto.

Lembro nitidamente daquela tarde em que liguei pra Rê pela última vez.
Foi naquela tarde que a mãe dela falou sobre o casamento.
Meu amigo Carranquinha achou que ela tinha morrido.
A mãe dela, por outro lado, achou que EU tinha morrido.

Eu não.
Naquele momento, tive certeza de que tudo - o nome de Renata,
a imagem de Renata dançando desajeitadamente porque não se agüentava de rir,
das mãos de Renata nos meus cabelos,
a voz de Renata e aquele mundo que nós dois criamos -
estava imortalizado para sempre, natureza morta,
sob o verniz de um beijo que nunca aconteceu.

Quando a gente se conheceu, era perto da Páscoa.
Naquela Páscoa de 94, ela me deu um ovo e ganhou uma caixa de bombons.
Fiquei quase dois meses roendo chocolate daquele ovo e, mesmo que tivesse roído de lá até esse dia de hoje, chegaria a esta mesma conclusão - de que nem todo o chocolate produzido no mundo até hoje e de hoje pra frente será capaz de tirar da minha boca esse gosto amargo do beijo que nunca houve.

Quando escutei essa música, "I Miss You", lembrei da Renata.

Acidentalmente, como de costume, a música seguinte foi "Time Waits For No One", dos Rolling Stones.

Aí lembrei quem sou,
onde estou
e pra onde vou.

O tempo não espera por ninguém...
E não vai esperar por mim.
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5 comentários:

Anônimo disse...

Eu preciso mesmo dormir, mas o teu texto fodeu tudo. Eu adoro ler romance, mesmo. Adoro ler romance com final infeliz, de vez enquando eu acho que gosto de ser infeliz... mas só por um tempinho. Eu adorei ler isso! Mesmo, mesmo, mesmo. Boa noite e me deu vontade de escrever =~

Maria B. disse...

Putz! Me emocionei com esse seu texto... romances contados de um ponto de vista pessoal sempre me emocionam, ainda mais se não tiverem dado certo. Acho que me lembram a minha própria vida amorosa, sei lá. E, nesse caso, eu sei bem dessa sensação que você descreve no seu post... esse encontro com pessoas especiais que não se tornam o amor real das nossas vidas, mas que permanecem sendo o amor das nossas vidas te olhando de um lugar que só a gente sabe. No final fiquei imaginando uma cena de você correndo atrás dela e se declarando (porque no fundo eu torço pra um final feliz). Mas, é isso, o tempo não espera por ninguém.

p.s.: ouvir soul music pode ser muito perigoso...

Bella disse...

O tempo não espera ninguém. E nada dói mais que a lembrança do que não aconteceu. Beijo

Kakaya disse...

POis é, todos nós temos uma RENATA na vida...E o tempo...Ah, esse é o que nos prega mais peças!
Beijos, adorei o texto ;)
Ah, mas ele é sem fim.Afinal vc não está morto, somente brincando de pirata!rs!

Renatinha disse...

O amor, é assim....
Lindo e belo e dolorido e distante...
beijos de outra Renata