Been caught stealing!
"Em uma sociedade onde todos são culpados, o único delito é ser pego."
Hunter S. Thompson
Isso foi no naqueles últimos dias de aula antes das férias de julho de 1990.
Deixa eu te localizar no tempo, criança, pra que você saiba o que era viver em 1990. Primeiro: não existia CD.
Quer dizer... existir, existia.
Mas era como blu-ray, quem podia ter tinha.
DVD, nem pensar.
Tinha video-laser, que era tipo um vinil feito de CD e que tocava filme.
Não, eu não vou explicar melhor que isso.
Naquela época, eu tinha 17 anos incompletos, só ouvia música em fita cassette e tinha ganho meu primeiro vinil, que foi "London Calling", do Clash, presente do Bibi.
Era justamente pra casa do Bibi que eu tava indo.
Na manhã daquele mesmo dia, o Mário, a Cibele e a Kelly e eu tínhamos apavorado o shopping Iguatemi.
A gente matou aula e foi pra lá de besta e acabou saqueando as lojas americanas de lá só pra curtir.
Depois, a gente ainda deu um gato na C&A e ainda deu tempo de correr dos seguranças, entrar no ônibus e fazer bundalelê, naquilo que qualquer locutor de chamada de filme pra Sessão da Tarde chamaria de "aprontando muitas confusões".
O Bibi tinha conversado com a Kelly, porque ele insistia em ficar com a Kelly e a Kelly cagava pra ele (aliás, a Kelly ficava com o Alê e isso fazia com que ela cagasse pra todo o resto de nós – e foda-se, porque o Alê era um cara fantástico).
Sei que a Kelly contou o que a gente tinha feito e ele quis fazer também, só que com os amigos dele e no shopping paulista.
E assim foi.
Cheguei no Franz Café da Lins de Vasconcelos e o Bibi tava com o Fred e o Sálvia. A gente desceu lá no apê do Bibi porque ele tinha telefonar (esqueci de dizer: 1990 não tinha celular) e não tinha voltado. Chegamos lá e ele tava descendo, com uma mochila nas costas.
Era inverno e eu usava um jaquetão de veludo com lâ por dentro que, no ano passado, dei de presente pro Hélio Matheus.
Aquele casaco era o melhor pra roubar coisas.
De manhã, no Iguatemi, ele tinha sido um sucesso.
Quando as Lojas Americanas abriram, a gente invadiu como arrastão.
Vai ver era mesmo.
Só que eu só fui ver um arrastão de verdade na TV, no cursinho, em 1992.
Estávamos em junho de 1990.
A Cibele me encheu o casaco de calcinha por dentro e eu ia enfiando as calcinhas por dentro das mangas, que era pra poder andar com o casaco aberto e não dar pala.
Naquela época, eu usava também aquela minha mochila de carteiro – aquela que virou ninho de tico-tico depois que mudei pro clube de campo – e, conforme eu ia passando na parte dos doces com ela nas costas, o Mário e as meninas enchiam a mochila de guloseimas.
Sei que eu peguei uma barra de chocolate meio-amergo, estendi pro Mário e disse “bota essa também”. Naquela época, até hpje não sei porque motivo, eu só comia chocolate meio amargo.
O café da manhã na rua, com todas as coisas que a gente tinha roubado em volta da gente, é uma das imagens que eu jamais quero esquecer em toda minha vida.
Pode dizer que é feio, que é errado, que é tudo.
Mas foi legal pra caralho fazer aquilo.
Foi tão legal que a gente voltou.
Na C&A foi mais difícil e a Cibele pediu pro Mário roubar um chaveiro de merda que tinha lá, porque ela queria aquele chaveiro de merda.
O Mário foi e pegou.
Tinha sensor na porta, mas eu já tava do lado de fora e foi pra mim que o Mário jogou o chaveiro. Passou por cima do sensor e tava tudo bem.
Até que o segurança da loja deve ter notado que a Cibele tava pegando alguma coisa e veio na direção da gente.
Parei o primeiro ônibus que passou e a gente subiu.
O Mário ainda subiu com ele andando, pra poder ajudar a Kelly.
Tanto no saque matutino quanto no vespertino teve cena de ônibus.
A diferença entre um e outro é o ponto crucial.
Essa foi uma e a outra, conto depois.
Outra coisa que você, criança, não sabe sobre 1990: naquela época, subia-se por trás do ônibus. Sempre achei que assim que era o certo porque, lá na frente, você podia chegar perto do motorista e educadamente pedir pra que ele parasse no próximo ponto.
E também, claro, porque havia sempre a possibilidade de se descer por trás do ônibus sem pagar nada.
Evidentemente, nós quatro descemos por trás.
E nem foi por mal.
É que, na correria toda, eu parei qualquer ônibus e calhou de ser um que levaria a gente pro centro e o caminho que ele fazia não ia nos ajudar muito.
Agora, no saque da tarde, o caso era diferente.
Veja bem os putos que estavam comigo de manhã.
O Mário era safo pra caralho.
A Kelly e a Cibele eram espertas o bastante pra fingirem choro no caso de dar merda e elas sabiam muito bem que isso livraria a cara de todo mundo se a gente fizesse cara de idiota. E pode crer que eu e o Mário tínhamos as melhores caras de idiota disponíveis no mercado de caras de idiota..
Só que agora, preste atenção: estava eu com o Bibi, que era conhecido por cagar tudo nas horas de maior pressão.
Tinha o Sálvia, que era gente boa pra caralho, mas tinha sido criado à base de danoninho, cremogema e farinha láctea.
E tinha o Fred, que era filho do professor de física e era uma incógnita pra mim, apesar da minha intuição dizer muito a respeito de um cara que era filho daquele professor de física: o sensacional Nelsão – gente boa pra caralho, mas se ele roubasse uma balda da cantina, levaria a notícia estampada no seu rosto por todos os corredores e escadarias do Anglo Latino.
Outra coisa que você, criança, não sabia a respeito de 1990 é que, em 1990, criança, existia Mappin. O Mappin (não me surpreenderia caso ele voltasse como uma loja online, porque a marca é forte do caralho) era o antepassado de um shopping. Uma coisa que ainda hoje existe e persiste dentro dos shoppings e pode ser conhecida como “loja de departamentos”. Aqui no centro tinha o Mappin Praça Ramos, que foi o máximo pra minha avó, e, pra dona Cláudia (mamãe) deve ter sido o Mappin Itaim. Tinha também a Sears, que foi outro antepassado do shopping, que ficava justamente onde estávamos.
E onde estávamos?
No Shopping Paulista.
No recém construído Shopping Paulista, inaugurado não fazia nem um ano.
A gente aproveitou que o pessoal da minha classe e da classe deles marcou de se encontrar lá na praça de alimentação e foi pra lá, cheio de más intenções.
Lá dentro tinha um Mappin que era o nosso alvo primário.
Porque lá no Mappin as fitas ficavam bem fáceis de pegar e, uma vez que eu pegasse, era só trazer pra dentro da manga do casaco de veludo e, depois, descarregar no bolso interno.
Limpo.
Claro que imaginei que a gente fosse fazer isso depois de encontrar com o povo, mas eles queriam ir antes. Achei besteira, mas roubar ali seria tão fácil que ninguém nem ia perceber.
Limpo.
Quando cheguei na ala de fitas k-7 do Mappin (fitas cassete, criança) meus olhos brilharam. Era mais fácil do que imaginava. Do mesmo modo como eles brilharam, eles se apagaram, porque eu via que tinha uma senhora ali que estava percebendo o que o Bibi, o Fred e o Sálvia faziam.
Eu me senti o Dedé numa cena dos Trapalhões, só que ela não tinha graça nenhuma e isso fez com que eu, cada vez mais, me sentisse como o Dedé.
O Bibi era impressionante: ele olhava em volta, com uma naturalidade de filme expressionista, e então, num golpe rápido – tão rápido que parecia que ele tinha sofrido de algum mal-súbito, agarrava um maço de fitas com a mão e metia no bolso largo da calça.
O Fred e o Sálvia achavam que bastava que nenhum funcionário visse que estava tudo bem e metiam as fitas pra dentro das calças sem a menor cerimônia.
E a velhinha ali, vendo tudo.
Lembro bem o que eu peguei. Peguei duas fitas do Front 242, uma dos Talking Heads, uma dos Ramones e outra uma coletânea com as músicas que tocavam na O-o-o-o-o-o-o-overnight! Sei que você, criança, não conheceu a Overnight, mas, como eu também não conheci, ficamos assim.
Pois bem.
Claro que a velha dedurou a gente.
Aí, foi a cagada número dois – a cagada monstra.
O Bibi queria mousse de cabelo.
Não ria, criança.
Lembre-se: 1990.
Entrou numa farmácia que ficava bem perto da porta do fundo e usou o mesmo recurso de filme expressionista alemão.
Tava claro que ia dar merda.
E a gente ali, do lado da saída dos fundos do shopping.
Tudo bem que segurança que pegasse a gente no estacionamento, ia poder descer a mão sem dó, mas valia a pena arriscar.
Não na cabeça daqueles três, é claro.
Quando a gente foi pelo corredor, de volta pro shopping, a gente já deu de cara com um segurança meio que olhando em volta. Fui como quem não quer nada e entrei no corredor que ia dar pro banheiro. Os outros todos fizeram a mesma coisa e todos nós fomos pro banheiro ao mesmo tempo. Claro que ia dar merda.
Pior fui eu, que fiquei olhando pra trás e errei a porta do banheiro e acabei num quartinho cheio de produtos de limpeza. O erro acabou virando acerto, porque eu embolei as fitas num canto que evidentemente ninguém mexia e pronto: não havia mais como alguém dizer que eu tinha roubado alguma coisa. Era só esperar a poeira baixar, trocar de casaco com outra pessoa, voltar lá e pegar as fitas.
Os três saíram do banheiro aos trombolhões e foram pro corredor. Eu ia entrar no banheiro quando dois seguranças saíram de lá de dentro.
Dei passagem e entrei.
Mijei um mijo amarelo e difícil.
Lavei as mãos sem pressa e fui pra fora.
Quando saí no corredor, estavam lá, com uma cara de choro de cortar corações, o Bibi, o Fred e o Sálvia. Os seguranças em volta dele perguntaram “ele estava com vocês”. O Bibi olhou pra mim e assentiu com cabeça.
Claro que deu merda.
Levaram a gente pra uma salinha lá em cima. Juro que não encostaram a mão na gente. Eram lendárias as histórias sobre o amigo do amigo do amigo que foi pego roubando e foi destrinchado numa dessas salinhas de shoppings paulistas. Mas não foi esse o caso. Eu não tinha mais fitas comigo. Tinha sim, um canivete sem ponta de picar fumo, que tinha sido um presente do João Oscar e com o canivete eles implicaram. Um cara de terno me perguntava porque eu andava com um canivete no bolso e eu não era capaz de formular uma resposta melhor que aquela: “eu gosto dele”.
Porque eu gostava dele, os caras decidiram que eu não ia mais ficar com ele.
Eles ameaçaram ligar pras nossas casas.
Eu não tinha documentos.
Isso me deu uma idéia, imediatamente.
Quando cara perguntou meu nome, eu disse “Fernando Augusto Felício”.
Esse era o Fernandinho. Amigo meu, do clube de campo. Gente boa. Na época, ele trabalhava no Banco do Brasil e, com toda certeza, não estaria em casa.
“Minha mãe acha que eu estou no trabalho. Perdi o emprego no banco, mas não tive coragem de contar pra ela”, eu disse. Acho que aquilo fez com que o cara tivesse um pouco de pena de mim, porque ele ligou, falou com a mãe do Fernandinho, perguntou dele achando que perguntava de mim, ela provavelmente disse que eu estava no trabalho e ele perguntou se eu sabia quando eu voltaria – e perguntou isso olhando pra mim, sorrindo.
O Bibi inventou a história de que o pai dele era cardíaco e que podia passar mal se ligassem pra ele e os caras devem ter achado tudo tão patético que só juntaram a gente no meio da sala e tiraram fotos da cara da gente. Depois tiraram fotos de cada um de nós, sempre rodando o filme naquela máquina velha que fazia um barulho de catraca de lotação.
Depois disso, liberariam a gente.
E liberaram.
Na porta, o cara de terno apertou minha mão com dois dedos estendidos. Fiz o mesmo porque achei legal. Ele deu dois toques no meu pulso. Fiz a mesma coisa, meio que brincando. Perguntei a ele se podia me despedir da minha namorada.
Namorada?
Meu primeiro beijo seria no dia 8 de agosto daquele mesmo ano e, embora estivesse perto, ele ainda não havia chegado.
Subi até a praça de alimentação explicando pro segurança que se eu não avisasse ela que tava indo embora, ela ia ficar preocupada. Muito surpreendentemente, ele ia se mostrando cada vez mais solícito.
Cheguei na praça de alimentação, abracei a Sílvia e falei com ela que ia embora. Abracei a Sílvia e disse, sem dar margem pra piada: “No quartinho de limpeza no corredor do banheiro que fica lá no térreo, tem umas fitas empilhadas embaixo do armário, mais pra esquerda, na sua mão esquerda. Eu não vou poder pegar. Pega pra mim. Depois, eu pego com você”.
A Sílvia, que era uma das meninas mais legais que eu conheci em toda essa época do Anglo Latino, terminou de comer, pegou sobremesa, desceu lá e pegou as fitas.
Na porta, me despedi do segurança com o mesmo aperto de mão, com dois dedos esticados dando dois toques no pulso. Ele sorriu e disse: “fica longe daqui”.
No dia seguinte, no colégio, a Sílvia me entregou todas as fitas, mas ficou com a da O-o-o-o-o-o-overnight pra ela.
Nem reclamei.
Meses depois, voltei lá no shopping Paulista, meio com medo.
Aí, passou.
Entre 1995 e 1999, quando trabalhei na 89, que um dia foi a Rádio Rock, não houve um dia em que não passei pelo shopping paulista.
Depois disso, cansou e, aí, como disse pra Lelê dia desses, só entro em shopping se for pra cagar.
3 comentários:
Felício! Só vou te chamar assim agora!
adorei a viagem aos anos noventa... :D
Odeio shopping e já roubei chiclete e bala ok
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