16.7.08

PERRENGOMOTION 2007 – As histórias dentro da história da maior corrida de aventura da América Latina



(NOTA: o texto a seguir foi publicado na edição de número 31 da revista Go Outside - a melhor publicação de esportes de aventura que existe. Na foto acima, o crédito é do genial Felippe de Paula)

Eu nunca havia ouvido a palavra “perrengue” ser pronunciada tantas vezes até topar fazer esta matéria sobre o Ecomotion/Pro 2007 para a Go Outside.
De fato, eu estava feliz. Ia cobrir a maior prova de esportes de aventura das Américas, para a revista de esportes de aventura mais importante que conheço.
A largada da prova seria no dia 21 de outubro, na Urca, no Rio de Janeiro. Para mim, porém, a prova começou bem antes, na quinta-feira, dia 18, quando conheci o fotógrafo Alexandre Cappi. Conversando com ele, percebi estar bem pouco preparado para a cobertura: não tinha um saco de dormir, não sabia pra que servia um isolante e não fazia idéia do que poderia ser um anorak. Por sorte, Cappi tinha cada um desses itens sobrando na casa dele e foi pra lá que eu fui, 24 horas antes de partir rumo ao Rio. Ele repetia a pergunta que o pessoal da redação fizera pra mim: “você tem medo de passar perrengue?”. Diante da minha negativa, traçamos um plano base. Ele iria para o Rio antes e, lá, nos encontraríamos. Acompanharíamos a equipe de Renata Falzoni, teríamos um carro oficial da organização e a agilidade para acompanhar as equipes que quiséssemos acompanhar. Pra mim, aquilo seria o ideal.
Dormir no mato não me metia medo.
O único problema seria se chovesse, mas o Rio não via chuva há coisa de seis meses e não era justamente agora que a conta iria falhar. Pois é. Dizem que, para fazer Deus rir, basta apenas contar a Ele seus planos para o futuro. Então, naquele momento, Deus deveria estar rachando o seu divino bico da nossa ingenuidade.

A nau de insensatos

O ônibus que levaria a imprensa até Búzios, ao norte do estado do Rio, onde as 55 equipes participantes já se concentravam, teria saído às 22 horas, não fosse por um maldito repórter que não apenas atrasou, mas também desligou seu celular e ninguém sabia onde o bastardo estaria. Aproveitei esse tempo para fazer amizades importantes como Leco, do Studio Leco de fotografia, que ia contando para mim e para o pessoal do programa de TV Gravidade Zero, de Londrina, que cada dólar investido em esporte representa 100 dólares de economia em construção de presídios, recuperação de infratores e em combate às drogas. A equipe médica, formada por legítimos heróis do corpo de bombeiros de São Paulo e comandada pelo folclórico doutor Clemar, trocava suas impressões a respeito de “BOPE - Tropa de Elite” e impressionava pela capacidade de recitar diálogos completos do filme de José Padilha. Perguntamos para Gabriela Toledo, da assessoria de imprensa, quem é que estávamos esperando para ir embora e ela respondeu que só faltava o repórter da Go Outside, um tal de Fernando Tucori.
Não que o idiota tivesse chegado atrasado. Na verdade, ele chegou meia hora antes, não avisou ninguém e deixou seu celular desligado dentro da mochila que guardava o seu assento no ônibus. Isso não fazia dele menos idiota, mas, pelo menos, nos credenciava a partir.

Um tatu chamado Gérson

Durante a viagem, a única coisa que me preocupava é que eu não havia comprado o estoque de barra de cereais que Cappi havia me aconselhado a comprar. Consegui fazer isso na segunda parada, já em Rio Bonito, e, tomando o café da manhã na mesma mesa que o Leco, testávamos o limite de nossa insanidade. “Leco”, eu dizia, “e se a gente comprasse um desses tatus de madeira e desse de presente pro pessoal da Team Sole, como amuleto, pra eles carregarem durante toda a prova?”. Ele ria com gosto. O tatu em questão devia pesar coisa de 50 quilos de madeira maciça. “Ótimo!”, ele dizia, “a gente podia dar um peso-morto desses para cada uma das equipes gringas. E, se é pra levar um tatu, vamos levar também uma tartaruga. Pra quem a gente daria a tartaruga?”, perguntou. “Acho que seria uma boa dar pra Buff”, eu disse. Era uma decisão lógica. A Team Sole ganhou o último Ecomotion e a Buff ganhou o penúltimo. A gente não ia sacanear com nenhuma equipe brasileira, ia?
Durante toda a prova, boa parte das piadas do staff da imprensa girava em torno de um tatu chamado Gérson e de uma tartaruga chamada Jussara. A gente parecia retardado rindo de uma coisa tão absurda, mas ninguém se importava. Num certo ponto, a brincadeira virou mania e até os jornalistas gringos estavam fazendo piadas com Xérson e Xiussara.

Almoço em família

Para o sábado, estava previsto um almoço de confraternização, com presença de todas as equipes e apoios, imprensa e o staff da organização. Foi ali que a prova, de fato, começou. O restaurante poderia estar acostumado a servir almoço para coisa de cem ou duzentas pessoas, mas ninguém no mundo poderia prever o que acontece quando se junta aquele tipo de gente em volta de apenas três mesas servindo comida. Atente ao detalhe: pelo menos 220 pessoas – 4 atletas de cada uma das 55 equipes – estavam prestes a se embrenhar no mato e, provavelmente, passariam dias sem comer uma refeição como aquela. E eles comiam como equipes: teciam estratégias, faziam alianças e não aceitavam roer nenhum osso. Ninguém queria esperar a próxima fornada sair e, por isso, não havia mesa que bastasse a todos. Um apoio de uma equipe estrangeira rosnava sentado na mureta do jardim, reclamando que não iria comer como um cão. O cachorrão aqui já havia sitiado uma das mesas e, empunhando uma pinça gigantesca de pegar alface, passava a tarrafa em uma travessa de peixe cozido, servindo porções generosas a toda uma equipe e mais alguns apoios, para o Leco e para a Marina, do Gravidade Zero. Na parede perto da cozinha, um quadro com um cardume de tubarões-martelo não parecia tão faminto quanto o ambiente em torno das mesas. Durante a sobremesa, reencontrei Cappi, que me apresentou à “vovó” Renata Falzoni. Apesar dela ter implicado com o maço de cigarros no meu bolso, o seu olhar era o da autenticidade em forma de pessoa. Não havia como aquilo sair errado.
Combinamos que, no dia seguinte, às 15 horas, eles me buscariam no hotel e iríamos todos para a largada. “Hoje, você pode curtir. Amanhã, você é nosso”, disse Cappi.
Terminamos a noite em uma boate de Búzios, em uma equipe de três jornalistas incumbida de dividir 50 reais em cerveja e voltar para o hotel tão rápido quanto fosse possível. No café da manhã, ficamos sabendo que um de nós, não digo quem foi, chegou ao quarto do hotel onde estavávamos hospedados e tentou urinar dentro das botas de um dos fotógrafos.

Urca diz NÃO para a largada

No domingo, Cappi e Falzoni apareceram no hotel exatamente no horário previsto e nós pegamos a estrada para o Rio de Janeiro. Encontramos um entardecer de cartão postal no barro da Urca. O sol baixava vagarosamente no céu vermelho, por trás do Cristo Redentor, maravilha recém-eleita. Se Cristo abria seus braços para o Ecomotion/Pro 2007, a Associação de Moradores do bairro da Urca cruzava os seus. Eles já não andavam muito satisfeitos com a decisão de transformar o Cassino da Urca – tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional – em uma escola de design e, para eles, permitir que a largada acontecesse ali era abrir um precedente perigoso. Marcelo Camelo, do Los Hermanos, passa por nós e olha assustado a movimentação dos moradores portando faixas de protesto e ameaçando “chamar a Globo”.
Atrás de mim, uma jornalista gasta seu latim tirando as dúvidas de uma daquelas autênticas personagens de Nélson Rodrigues, a quem ele se referiria como “grã-fina de nariz de cadáver”.
“Como é que é mesmo o nome?”, ela quer saber. “Ecomotion, minha senhora. É a maior prova de esportes de aventura da América Latina. Vem equipe do mundo inteiro participar. E esse ano é importante porque no ano que vem, a Copa do Mundo dos esportes de aventura vai ser aqui, sabia?”, explicava a jornalista..“É mesmo? E quanto tempo dura essa corrida?”... “Ah, dura a semana toda”. “A semana TODA? Minha nossa senhora! E como eles fazem pra tomar banho, pra fazer as necessidades? E a roupa? Como eles fazem pra trocar de roupa?”. “É tudo durante a corrida, minha senhora. Vão ser (ela separou bem as palavras) quatrocentos e quarenta e quatro quilômetros de corrida”. “Quatrocentos...”. “E quarenta e quatro quilômetros”. “Meu Deus do céu. Eles vão a pé?”. “A pé, também minha senhora. Eles vão largar daqui com os caiaques e vão remar quase que até Teresópolis, pegam bicicletas e, depois, eles vão até o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, atravessam a Serra e vão embora”. “E quando eles pegam as bicicletas, onde eles deixam os caiaques?”. “Tem o pessoal do apoio deles que cuida disso”. “E onde acaba?”. “Em Búzios, minha senhora”. “Caramba... que disposição!”.
Enquanto a grã-fina falava a respeito do Cassino da Urca – ela achava que aquilo era uma “velharia”, que “tinha que ser demolida” e, em seu lugar, construído um estacinamento, “porque a Urca precisa de estacionamento” – chegava a informação de que a largada seria um pouco mais tarde e um pouco adiante, dentro da Escola Superior de Guerra do Rio de Janeiro, as 23 horas.

Feliz Ano Novo!

Ao chegar no novo local da largada, havia dois balões fazendo as vezes de velas naquilo que era um inegável banquete para os olhos. O acender repentino das chamas dava o tom de ansiedade e, quando dois helicópteros vieram contribuir com um violento rufar de hélices para aquele momento “Cavalgada das Valquírias”, eu tive a exata proporção do que era estar entre heróis.
Naquela eternidade de segundos que antecederam o sinal da largada, Cappi, postado com sua câmera no píer, via a tensão escorrer em gotas de suor, na espera de registrar o momento perfeito.
Depois que a buzina da largada soou – é um som inesquecível esse – e todas as equipes desapareceram com seus caiaques pela Baía de Guanabara, o clima entre os que ficaram era de um reveillon. Todos se abraçavam e desejavam boa sorte, certos de que, mais tarde, iam se encontrar outra vez e teriam um mundo de histórias para trocar.

O primeiro dia

Seguimos o plano traçado na noite da largada e passamos a noite em Teresópolis, perto da entrada do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (PARNASO). A idéia era esperar as primeiras equipes no Posto de Checagem (PC) número 4. Contávamos que as equipes teriam atravessado a Baía de Guanabara, feito a transição para o trecho de bike em Magé e, breve, estariam a caminho do Dedo de Deus, em Teresópolis, de onde, depois de nova transição, seguiriam no trekking até o PARNASO.
Porém, ao ligarmos o rádio-comunicador soubemos que o panorama era outro. Na manhã de segunda-feira, apenas duas equipes registraram passagem pelo PC1 e muitas delas haviam sido pegas pela vazante da maré e estavam presas na lama, arrastando lentamente seus caiaques até o PC2. Quem também estava encalhado no mangue era Said Aiach Neto, organizador da prova, que fazendo uso de seu afiado senso de oportunidade, pediu para que os helícópteros da organização viessem imediatamente registrar o cenário que ele via de onde estava. Cappi aproveitou a deixa e partiu para registrar o drama das equipes, atoladas até a cintura na lama, espantando caranguejos às bofetadas, mas sem jamais perder o bom-humor que aos poucos eu ia identificando como inerente aos esportes de aventura.
Assim que o helícóptero voltou ao chão, no heliponto improvisado em um campinho de futebol em Magé – onde Garrincha muito bem poderia ter dado seus primeiros passos no futebol, partimos para o PC4 onde, pela primeira vez, eu poderia ver uma equipe de apoio em ação. No caminho de volta, completamente absorto na atividade de observar as estudantes normalistas que esvoaçavam como borboletas pelas ruas da cidade, quase perdi a bomba que o rádio-comunicador nos atirava em mãos: três equipes haviam chegado ao PC2 sem passar pelo PC1. Uma delas era a SOS Mata Atlântica. Ao saber disso, Renata Falzoni sacou da única explicação que via como plausível. José Pupo, experiente navegador da equipe brasileira, jamais teria errado a localização do PC1. Portanto, havia alguma coisa errada com o PC1. Logo em seguida, a organização da prova admitiu que o posto havia sido colocado em local errado e ele foi cancelado. Quando chegamos ao PC4, nem precisamos esperar muito até que as primeiras equipes aparecessem. Eu estava conversando com Geoff Hunt, diretor da Adventure Racing World Championship – a FIFA dos esportes de aventura – quando as equipes que lideravam a prova – Buff Coolmax, Wilsa Hellyhansen e Orion Heath - chegaram praticamente ao mesmo tempo. Nosso carro, não por acaso, estava parado exatamente atrás do apoio da Wilsa e Geoff Hunt, pacientemente, ia me explicando o porquê de cada detalhe da transição. Ele fala sobre as fitas adesivas que são grudadas nos mamilos dos atletas para que eles não fiquem em carne viva por causa do atrito com a roupa e explica a importância do creme com que os atletas lambuzam generosamente seus pés, axilas e virilhas para acalmar a fúria das assaduras e das bolhas. O apoio serve macarrão morno em um saco plástico aos atletas. Geoff pergunta se eles estão cansados e ri quando eles respondem “just a little bit”. Os atletas rasgam o plástico com os dentes, apertam o saco e mandam pra dentro da boca o máximo de macarrão que podem. Penso se isso não é uma boa idéia para fazer nos meus cafés da manhã contra o relógio. Bjufords Adventure Racing, SOS Mata Atlântica e a Team Sole, que recuperou na bike o tempo que passara perdida, partem para o PARNASO formando um sólido pelotão de frente que ia sofrer poucas alterações daí em diante.

Dois imprevistos decisivos

O erro na localização do PC1 foi um fator decisivo na formação desse pelotão de frente que se manteve do PARNASO até o fim da prova. Senti uma dor legítima quando, acompanhando de carro a Team Sole, encontramos a SOS Mata Atlântica parada no início do trecho de trekking enquanto um de seus integrantes voltava ao PC4 para encontrar o mapa que havia sido esquecido por lá. Quando chegamos no início da entrada para a trilha que levaria até a Pedra do Sino, vimos as equipes Buff e OrionHeath, emparelhadas, se embrenharem na mata. Renata Falzoni e Alexandre Cappi subiram atrás deles. Estavam decididos a passar a noite na Serra dos Orgãos. Achei que seria loucura tentar acompanhá-los, eles acharam que seria loucura deixar um carro carregado de equipamentos desprotegido. Loucura por loucura, o carro ficaria comigo e eu dormiria na segurança do PC4, aguardando contato na manhã seguinte para saber onde e como iria buscá-los.
Foi justamente naquela noite que o segundo imprevisto aconteceu. A chuva que o Rio de Janeiro não via há seis meses desabou violentamente sobre Teresópolis às 21h30. As equipes que formaram aquele pelotão de frente já haviam passado pela pior parte do trajeto e, quando a chuva veio, elas já estavam sobre suas bikes, pedalando rumo ao PC7. A chuva chegou lá primeiro, as 2 horas da manhã de terça-feira. A Buff, chegou logo depois, às 3h10. Antes das 4 horas, eles teriam a companhia de Wilsa e Orion Heath. A Team Sole, quarta equipe a encaixar seu chip no PC7, só chegaria ao raiar do dia, às seis e meia da manhã. E as equipes que, como Falzoni e Cappi, passaram a noite no PARNASO? Como teriam se virado?
A resposta mais apropriada para a pergunta era “não muito bem”. Com a chuva, a temperatura caiu muito e a hipotermia era um fantasma real. Havia dois abrigos na Serra dos Orgãos. A imprensa oficial estava nos dois. O primeiro deles, onde Cappi e Falzoni passaram a noite, amanheceu como um abrigo de refugiados de Kosovo. Uma das fotos que Cappi tirou por lá, mostra tantas cabeças num só enquadramento que parece a pista de dança de uma festa em que todos resolveram ir vestidos de atletas de corrida de aventura no perrengue. A equipe Oskalunga colheu os frutos da estratégia de combater o frio por meio do movimento constante e começou a consolidar ali o seu posto de equipe brasileira melhor colocada na prova.
Além de ter separado decisivamente o pelotão de frente do resto dos competidores, a chuva fez com que, por motivos de segurança, toda a parte de técnicas verticais fosse cancelada. Desafiando o mau tempo, seguimos até o PC7, para onde se dirigiam, de bike, todas as equipes que haviam saído do PARNASO. Os funcionários da organização que trabalharam lá descrevem a noite em que a chuva começou como um pesadelo. Não havia sequer uma luz, chovia torrencialmente e as equipes só acreditavam que a Cachoeira do Frade estava ali quando um ou outro relâmpago iluminava a paisagem por instantes dando àquilo tudo um ar de cena excluída de um filme de Tim Burton.
Édson Dutra, da equipe médica, contava que a equipe sueca Bjufords teve problemas quando a chuva realmente engrossou porque eles decidiram dormir na encosta de um barranco e, quando o mundo caiu, eles quase foram levados embora pela enxurrada que descia do morro.
Não sei se foi aí, mas foi debaixo da chuva de terça-feira que me dei conta que havia algo mais interessante que as façanhas sobre humanas de uma prova como esta. Havia ali, algo inegavelmente humano e, a cada história que colhia, mais estava certo de que a última colocada seria tão aplaudida quanto a primeira e que, como em toda saga de herói que valha a pena ser contada, a jornada era muito mais importante que o destino.

A chegada

Ainda debaixo de chuva, acompanhamos a passagem da Buff Coolmax pelo PC25, em Rio das Ostras, onde os espanhóis fizeram a última transição, largando as bicicletas e pegando os caiaques que os levariam até a chegada, em Búzios. A equipe entrou na água ao lado da casa onde morou o escritor Casimiro de Abreu e seguiu no rio, acompanhada por nossa equipe, até chegar ao mar. O medo ficou evidente em seus rostos, quando nosso barco fez meia volta, retornando ao ponto de onde havia saído, antes que a água ficasse completamente salgada. O experiente piloto do barco não se arriscaria contra aquelas ondas. “Parece aquele filme... `Mar em Fúria`, sabe?”, dizia Cappi. Parecia mesmo. O barco não se arriscaria, mas os caiaques seguiram em frente e a gente só saberia o que ia acontecer com a Buff quando os encontrasse outra vez, na linha de chagada. Era noite de quarta-feira e, enquanto eles remavam rumo ao PC26, eu ia tomar meu primeiro banho da semana. Quando estávamos a caminho da chegada, soubemos que a Buff havia aberto seu rádio e que poderia estar perdida no mar. Toda a imprensa estava esperando, mas eu ainda temia por uma tragédia de tal maneira que, quando a Buff finalmente chegou à praia, por volta de uma e meia da madrugada, eu chorava mais do que eles. De cima do pódio, Emma Rocca dizia que, para vencer, é preciso acreditar que é possível vencer e jamais jogar a toalha. Disse a ela que havia ficado com medo que eles tivessem se perdido no mar. Rocca disse que eles não se perderam, mas que aquele trecho final havia sido tão dificil que eles acharam melhor abrir o rádio. “A gente estava enfrentando ondas de quatro ou cinco metros. Era realmente perigoso. Paramos e pedimos ajuda em uma casa, mas as pessoas não entendiam a nossa língua e não quiseram abrir a porta. Então, abrimos o rádio e eu disse ‘Said... O que é que a gente faz?’. A situação estava feia e a gente precisava avisar as outras equipes de que o mar não estava fácil. Talvez eles não soubessem o que teriam de enfrentar”, disse Emma Rocca.
Enquanto ela sorria pra mim e dizia algo como “felizmente tudo acabou bem”, eu parecia ter sido atingido por um raio. Meus olhos estavam fixos no lóbulo da orelha de Emma Rocca e eu não podia acreditar no que via. Era a prova máxima de que, se existe um Deus, o senso de humor Dele é formidável. Corri para a van da imprensa e disparei a machete: “ELES TROUXERAM A JUSSARA”. Os fotógrafos, que já davam o trabalho por encerrado e enxugavam seu equipamento, arregalaram os olhos e voltaram para a praia. Em questão de instantes, Emma Rocca estaria novamente cercada por fotógrafos que, aos berros de ‘sai! sai! sai!”, disputavam a melhor foto de sua orelha.
Emma Rocca terminara a prova usando brincos de tartaruga - azuis como um sonho bom – e aquilo que havia sido nossa diversão por toda a prova, assumia ares de premonição.
Acompanhei Emma na subida que a levaria até a pousada onde ela estava hospedada e, ao lado de Felippe de Paula, do site oficial, tentava explicar a ela o porquê do súbito apetite dos jornalistas por suas orelhas. Ela ria, divertida. “Então, foi uma premonição? Vocês da imprensa sabiam que a gente ia ganhar?”. Eu tentava encontrar um equivalente em espanhol para “mais ou menos isso”. “Então por que você não contou isso pra gente antes?”, ela disse, com um um sorriso lindo como o céu deveria ser.
Abracei seu corpo gelado, dei parabéns pela conquista e fui embora.
Daí em diante, para meu total constrangimento, eu não poderia mais ver Emma Rocca sem que desatasse a chorar novamente.
A história havia sido feita e, agora, era hora de buscar as histórias, não menos importantes, mas tão fascinates quanto o que eu acabara de testemunhar.

Piada pronta

Na noite em que a chuva começou, a equipe canadense abriu seu rádio. Eles haviam perdido o seu mapa e não conseguiam encontrar o caminho para o PC4. A organização sugeriu que eles procurassem a rodovia mas, para ajudar um pouco, as luzes da rodovia se apagaram. Assim, a equipe canadense, chamada Lost In Transition, acabou perdida justamente na transição da bicicleta para o trekking.

Pangarés

O trecho entre os PCs 12 e 14 era o trecho de cavalgada e causou grande expectativa entre os populares que acompanhavam a prova. O trecho era curioso porque os cavalos precisavam ser conduzidos em uma velocidade tal que não maltratasse os animais. “De que adianta esses cavalos lindos e fortes, se esses caras levam eles como se fossem pangarés?”, dizia um morador que acompanhava a prova.

MacComotion

O carro da imprensa oficial emparelha com as atletas da Atenah. A câmera aponta para Nora (?) que, antes de qualquer pergunta, dispara: “Eu quero um McChicken, batata frita, um suco e um sundae de chocolate para a sobremesa”.

Um cachorro chamado Sai Fora

O PC 20, em Barra do Sana, em que os atletas faziam transição do trekking para a caoagem (duck) recebeu um visitante insólito. Um carente cãozinho preto que foi encontrado na cama de um dos fiscais. “Encontrei esse cachorro deitado na minha cama. Então, dei pra ele o nome de Sai Fora”, dizia o sujeito. Durante a passagem da equipe SOS Mata Atlântica por lá, a atleta Manuela Vilaseca brincou um pouco com Sai Fora antes de cair na água. Foi o que bastou. O cão seguiu a equipe até as corredeiras e voltou amuado pro não conseguir acompanhá-la. Na quinta, Sai Fora já havia conseguido chegar no PC25, em Rio das Ostras e houve quem apostasse que, se ele não estivesse na chegada até sexta, era presença garantida na festa de enceramento, no sábado. O capitão da equipe Selva, Marcio Campos, brincou com os jornalistas que juntavam restos do seu almoço para alimentar o magro cão: “Cuidado porque se um atleta vê isso com vocês, é capaz de roubar e não deixar nada pro cachorro”.

Selva e a baleia

A equipe E.C.P Selva, liderada por Márcio Campos, segunda melhor colocada entre as equipes brasileiras (8o. lugar) avistou uma baleia em sua perna final de caiaque rumo ao pódio. A baleia passou bem perto dos caiaques e fez com que eles apertassem as remadas. “Acho que a gente chegou mais rápido porque ficou com medo que os caiaques virassem em alto mar”, disse Márcio. Ajudando os apoios de uma das equipes, Márcio mostrava bom humor no PC25, em Rio das Ostras, exibindo os ferimentos na região lombar, provocados pelo atrito do colete durante os trechos de remo. “Vocês botaram minha bunda na internet pra todo mundo ver, não botaram?”, dizia ele.

Atenah é aventura

A equipe Atenah Natura foi a terceira equipe brasileira a atingir o pórtico de chegada, em nono lugar. Saiu do mar sorridente e cheia de histórias pra contar. “Não chovia no Rio de Janeiro fazia dois meses e, do nada, começou a chover. Daí em diante, a gente passou a esperar de tudo”, dizia Shubi, a capitã da equipe. “Imagina só que na prova surpresa, que a gente ia de carrinho de rolimã numa estrada de ferro desativada, onde não passava mais trem, resolveu passar um justamente quando a gente tava passando. A gente olhou pra trás e tinha um TREM atrás da gente. Parecia coisa de desenho animado!”, dizia. Para elas, a parte mais difícil da prova foi justamente a primeira noite. “A gente se escondeu em uma caverna e dormiu um pouco. A Cris estava com hipotermia e a gente tinha que parar. Aí, a gente dormiu um pouco e tentou seguir no trekking para não passar a noite no parque, mas a gente andou por uma hora e acabou chegando no mesmo lugar. Então, a gente resolveu que ia dormir e esperar o dia clarear”, disse Shubi. “A gente conseguiu até uma pousada cinco estrelas”, brincava Fernanda Maciel. “No trekking noturno, a gente pediu abrigo numa casinha que tinha no alto da montanha. Lá, morava um casal com seus oito filhos. Eles receberam a gente e ficaram meio sem jeito, porque não tinha cama pras quatro, mas a gente só queria descansar um pouquinho, coisa de 20 minutos, mesmo que fosse no chão. Eles deram cobertores pra gente, fizeram um cafezinho quente e depois vieram se desculpar pela simplicidade, aí eu disse pra eles que, perto do perrengue que a gente vinha passando, aquilo que eles tinham oferecido era coisa de hotel cinco estrelas”, disse ela.
Na última parte no caiaque, Shubi conta, elas estavam brincando com as velas dos caiaques, fazendo festa uma com as outras, quando olharam para trás e viram que ninguém menos que a equipe Quasar/Lontra, estava bem na cola delas. A Atenah então firmou a mão no remo e garantiu sua posição, chegando com menos de um minuto de diferença na Praia dos Ossos, em Búzios.
“Amanhã, tem festa na casa das Atenah”, dizia Shubi ao deixar a praia. “Hoje não. Hoje é banho e, depois, curtir uma cama bem quentinha”.

Festa na casa das Atenah

A festa na casa das Atenah, na sexta-feira, dia 26, foi até melhor que a festa de encerramento do Ecomotion. Todo mundo passou por ali, trouxe cerveja, salgadinhos e conversou com todo mundo numa torre de babel formidável. Eu já estava pensando em português, inglês, portunhol ao mesmo tempo e falava como bêbado em todos os idiomas. O foco das atenções masculinas era Maria Saleta Castro, de 20 anos de idade, da equipe Gallaecia Bugarent, dona de uma beleza ímpar que fez com que marmanjões disputassem abertamente uma faísca de seu sorriso. Enquanto a gente se divertia por lá, a equipe Goiabada Power chegava na praia aparentemente vazia e, no pórtico de chegada, via as quatro medalhas e um bilhete que dizia “Parabéns Equipe Goiabada Power. Não agüentamos esperá-los e fomos para a festa da Atenah”. Desconfiados, os atletas começaram a gritar “cadê todo mundo?” e – surpresa! – todo mundo saiu de dentro da tenda de som e fez a festa com eles na Praia dos Ossos.

Planos para 2008

“E aí? O que você achou?”, perguntava para mim Geoff Hunt. Não era surpresa para ninguém que ele seria mais rápido que eu. “Achei ótimo. Foi uma das coisas mais fantásticas que eu já vivi. Foi – mesmo – como estar no meio de heróis”, respondi. Então, quis saber o que Geoff esperava da prova em 2008, já que ano que vem, a Ecomotion seria a final do Mundial de Esportes e Aventura. Ele me disse que a prova do ano que vem teria de ser mais dura, mais longa e esperava que nenhuma equipe completasse a prova em menos que três dias. “E a organização precisa ser perfeita”, concluiu.

Por fim

“Te deu vontade de participar?”, me perguntou Thamara Giampaolo, da organização da prova, no meio da festa de encerramento. “A gente precisa saber qual é nosso negócio. O meu negócio não é ser Aquiles, o cara que faz a história. Meu negócio é mais ser Homero, que é o cara que conta a história”, eu disse.
Por isso, é importante dizer que, tão fundamental quanto os atletas e equipes – isso inclui os apoios - que participam da prova, é a equipe que está ali, dia após dia, dando sangue do próprio corpo pra que tudo aconteça da melhor maneira possível. Gente que atende por apelidos improváveis como Gambá, que salvam vidas, e pessoas que desafiam um diminutivo - como Pedrinho - e se tornam maiores do que a vida pode ser.
Estes são os heróis – na mais crua acepção da palavra.
Eu tive a sorte, o prazer e a oportunidade de ser Homero neste mundo de Aquiles.


PS: Declaro aqui não ser verdade que Leco e eu fomos chamados ao palco por Thiago Valois, diretor-técnico do Ecomotion Pro 2007, para que apresentássemos o “Funk do PC” – um verdadeiro sucesso na van dos jornalistas – durante a festa de encerramento da prova. Também não é verdade que fomos vaiados, expulsos do palco e teríamos sido alvo de latinhas se o próprio Said Aiach Neto não tivesse intervido em nosso favor naquele que seria o maior mico de todas nossas vidas.


* Por causa da imensa falta que irá fazer no Ecomotion 2008, o texto e as fotos desta matéria são dedicados a Pedrinho – que, para sempre, será o cara mais legal da história.
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