Me & The Devil Blues
Era uma tarde de janeiro, cinzenta e abafada, com trovões distantes de uma tempestade que, por enquanto, só rosnava, mas já atordoava a tênue rede elétrica como brisa na chama de uma vela. Os cães, deitavam-se no chão frio da varanda e, tentando aliviar o calor, tinham espasmos de pesadelos que eu jamais entenderia.
Foi em um dia assim que - sem querer, eu acho - acabei invocando o demônio.
Um vento inexplicável surgiu levantando uma onda de poeira que não havia e a porta enferrujada de um carro bem velho e preto se abriu, de trás pra frente, depositando meus pés lá dentro de tudo. Uma garganta em chamas chamava pelo meu nome e dava pra jurar que a voz que eu ouvia era exatamente a minha própria.
Dizem que o diabo pode levar tudo que a gente tem, menos os olhos.
Os meus olhos são uma escolha.
Eu escolho entre ficar com eles ou dá-los ao diabo.
Foi com meus próprios olhos que vi que ele se aproximava com sorriso alvo e braços abertos. Meu próprio demônio: aquele que eu mesmo construí. Admirou-me que eu tivesse o trabalho de construir um diabo pessoal tão bonito. O demônio - meu demônio - tinha mesmo que ser impecável de tão bonito. Tinha que ser o que eu não sou. Mais que isso. Tinha que ser o que sou incapaz de ser. Melhor ainda se ele fosse o que eu jamais poderia ser.
O meu demônio olhou pra mim, dentro dos olhos e quase pregou minha alma no fundo do meu crânio. Fiquei hipnotizado - uma galinha diante da cobra. Quieto. Só esperando o bote. Esperando, passivo, aquele golpe que acabaria comigo. Meu demônio e eu, frente a frente. E eu nem tenho mais 27 anos. Ainda vai demorar algum tempo para que minha idade tenha um 7 dentro dela outra vez.
Gim.
Quero gim.
Quero sim
Um gole de gim.
Isso vai me fazer forte.
Essas palavras acontecem na minha cabeça, mas saem da boca do demônio.
Ele tem meu rosto, mas tem os dentes perfeitos.
Ele tem meus cabelos, mas não as minhas entradas.
Ele é o que eu fui.
Ele é o que eu poderia ter sido.
E fala por mim.
O que eu posso contra isso? São os meus pensamentos e eles fluem através da boca dele com uma voz que eu teria se tivesse fumado menos. Não... É uma voz que eu teria se tivesse fumado o bastante. Uma voz rouca e doce. Uma voz que, se eu pudesse cantar, cantaria com ela.
Os copos da sala tremiam.
Pareciam que iam estourar.
Ele não fala.
Ele canta.
Quando eu desci na estação de trem, havia uma maleta em minha mão. Todo meu amor em vão. Eu estava tão sozinho que eu não podia evitar chorar. Essas palavras são de Robert Johnson. "Love In Vain". Eu demônio sabe disso porque eu sei disso. Eu não disse isso. Não cantei porque estou mudo. O eu demônio fala por mim.
"Por que você não tenta?", diz ele.
"Tenta o que?", responde com a minha voz, que soa cada vez mais irritante, fraca, frágil, feia.
Meu demônio acha que sei o que quero tentar. Talvez ele saiba, mas eu não sei. O que eu deveria saber? Acho que deveria saber tudo. Respostas, respostas e respostas: não é isso que o mundo quer?
Estranhamente, "acho que eu deveria saber tudo", balbuciada entre dentes, quase muda, é a primeira frase que sai pelos meus próprios lábios. O demônio, enfurecido, olha para mim como seu eu tivesse roubado dele aquela frase. Logo, aquilo que parecia fúria, tornou-se um carinho e, tremendo, acompanho sua mão com os olhos enquanto ela vem repousar no meu ombro. Quando aquele braço começou a se estender, eu estava a uns 15 metros de distância dele.
Quando a mão me tocou, ele estava do meu lado.
Sentia seu hálito.
Havia perfume de seu hálito.
"As vezes tenho vontade de perguntar que diabos está acontecendo?"
Eu já não sabia mais quem estava falando. Sabia que o som saía da boca dele, mas era a minha voz ou a voz dele?
"O que está acontecendo comigo? De onde vem todo esse meu medo? Sim... Porque eu tenho medo. Tenho muito medo. Você olha pra mim e acha que eu não tenho medo nenhum, que eu sei exatamente o que estou fazendo, mas não... Eu tenho medo disso: de não saber o que eu estou fazendo e, depois, passar anos da minha vida olhando no fundo daqueles olhos que me olham com pena e ficar me perguntando 'onde foi que eu errei?' e saber exatamente onde eu errei. Foi aqui, quando eu sabia direitinho o que fazia. Eu errei quando disse 'não se preocupe' e na verdade queria dizer 'preocupe-se, por favor'. Claro que eu tenho medo. E não é só isso não.
Eu tenho um monte de dúvidas.
Claro que tenho.
É engraçado ver como o tempo muda a gente.
Primeiro, um milagre de Deus.
Depois, perdido em círculos.
Deus cai em desuso.
Coisa pra poucos, coisa pra loucos.
E nós ('nós quem?', eu me pergunto e ele gesticula com dois de seus dedos, como se dissesse 'ambos'), continuamos perdidos.
Assim é minha vida.
(Ele aponta para mim. A voz é minha)
Perdida.
Seja lá o que eu fizer, ela vai continuar perdida.
É só ter um pouquinho de medo, que - pronto - a vida faz uma curva e nunca mais sai dela.
Círculos, círculos, círculos".
Tudo passa a rodar. São meus próprios lábios: "o que é que eu finjo não saber?".
"Se você pensar com força", ele diz, "se pensar direitinho, vai achar uma resposta".
"Se você procurar direitinho, vai achar pêlo em ovo, vai achar chifre em cabeça de cavalo".
Eu quero que tudo pare de rodar.
Preciso que o mundo pare, senão eu vou vomitar.
Estou enjoado.
Minha carne fede a enxofre eu não sei o que fazer.
EU
NÃO SEI
O QUE FAZER.
(...foda-se...)
"O que você disse?", ele está com as mãos em torno do meu pescoço. Vasculha meu cérebro com as unhas como se remexesse um baú velho. Sinto dor enquanto ele faz isso.
Ele chega em um canto escuro onde um garoto ferido e assustado se encolhe, amedrontado com a escuridão. Ele se torna um gigante perto desse garoto. O garoto levanta a cabeça sobre o ombro e diz, articulando todas as letras, comprimindo os lábios e sibilando: "foda-se".
O demônio ri diante do garoto, que, corajosamente, vira de frente.
"O que você pensa que vai encontrar dizendo 'foda-se'?", ele pergunta.
"Foda-se!", ele repete.
O demônio congela em seu sorriso.
O sorriso não avança nem recua.
Hesita.
"Foda-se!", ele repete.
"Olha para mim", ele diz, "olhe o que você é".
Lentamente, o garoto se ergue sobre pés vacilantes e, por último, levanta os olhos.
"Olhe você para mim. Veja o que você é: um moleque maltrapilho, fedido, cheio de machucados, assustado, perdido. Isso é o que você tem?".
Em outro canto da minha alma, uma tela exibe um filme de Humphrey Bogart - e eu adoro o Humphrey Bogart. Ele diz: "às vezes acontece de sua cabeça mandar você fazer uma coisa e sua vida inteira mandar você fazer outra".
O demônio diz "Você vai ser um completo imprestável"...
O garoto respira.
Suspira.
Transpira.
Agora vai.
"Foda-se!
Vou e foda-se!
Foda-se! Foda-se! Foda-se!
Por que é que a gente tem que ter essa obrigação de achar a solução pra tudo?
Tem coisas pra que a solução é não ter solução...
Elas... NÃO TEM... solução!
Pelo menos não por enquanto.
Não ainda."
O garoto olha para mim, eu olho para ele e, num instante somos apenas um par de olhos olhando para o demônio.
"É isto que eu sou".
São palavras minhas.
Todas minhas.
"Eu sou tudo isso: sou o que sou e o desejo do que quero ser.
Sou meu céu e meu inferno, aprisionados, dividindo a mesma carne".
Este pouco que sou é tudo que tenho.
Este pouco que tenho é tudo que sou.
E foda-se.
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