21.7.08

A arte de fazer a vida valer a pena não está morta (só tá com um cheiro esquisito)




A primeira coisa que eu saquei quando comecei a deixar de ser criança e começava a ser moleque foi que, no colégio, os professores - mais do que legais ou chatos - eles podiam ser separados em vivos ou mortos.
Os vivos sempre me interessavam mais e os mortos nem tanto. Os mortos eram sempre burros e, sendo burros, eram sempre chatos, porque pessoas burras são problemáticas e autoritárias. Sempre estão com problemas em casa e nunca têm o menor tesão pra dar aula. Estes são os mortos e eles são muitos. O senso de humor deles varia entre muito pouco e quase nada e sempre, por muito pouco ou quase nada, eu acabava mandado pra fora (olááááááá, fumaaaaantes do banheeeeeirô!) ou então colocado pra assistir aula na primeira carteira, colado na lousa (oláááááá, riniiiiiiiite aléééééérgi-cá!).
Nessas aulas, eu sentava direito, com a coluna reta e fingia respeito. Pessoas mortas sempre impõem um teto em uma discussão e o teto, nesses casos, é a autoridade que eles têm e você não. Aí, pra quê discutir com gente morta, né? O morto finge que me ensina, eu fingo que aprendo com ele e, na hora da prova, o morto lê jornal e eu leio a prova da Simone e erro a pergunta dois de propósito porque - questão de ética marginal - não se pode tirar nota maior do que a mão que passa cola vai tirar. Média cinco. Pra vida deles todos, uma vida toda morta, toda torta.
Aí, entra um professor vivo na sala. Primeira coisa: ele olha pra você sem medo. Ela sabe do que ta falando, então não precisa ficar retomando a coisa mentalmente o tempo todo. Os professores mortos não sacam isso, mas essa mania que eles têm de deixar lacunas no pensamento é a principal causa de anarquia em uma sala de aula. Os professores vivos sacam. É uma olhada dentro dos teus olhos e eles conseguem ver todas as piadas de mau-gosto, as associações pervertidas, os duplos sentidos. Ele sabe porque ele mesmo já pensou naquilo e achou engraçado. Então, ele não tem medo.
Numa dessas, a Pomba - o nome dela não é esse, mas era assim que a gente chamava a professora de geografia - captou uma dúvida fingida nos meus olhos e eu perguntei: "Fessôra... quiquié morrote?". Tava no texto e eu não sabia o que era, logo, era uma dúvida plausível e justificável.
- "É um morro pequeno, Fernando". Uma resposta plausível e justificável, num fôlego só, sem nem levantar os olhos. Ela sabia do que falava. Sempre sabia. "Então, com isso, a agricultura...", e eu quase ia deixando que ela escapasse.
- "Fessôôôra...", eu não ia perguntar se ela não parasse tudo e olhasse pra mim.
- "Quiquifoi, Fernando?".
Ela parou tudo e olhou pra mim. Eu estava olhando pra ponta do meu dedo indicador da mão direita e levantei os olhos como se estivesse entretido o bastante pra nem perceber que ela falava comigo.
- "Eu tava achando que tinha tirado um morrote do nariz..."
- "Negativo de morrote para o senhor".
Ela riu, eu também. O prazer é nosso, fessôra. O ponto negativo que ela me dava não era nada. Minha piada não era nada. Pelo menos a gente ia ter do que falar, sfosse no café da sala dos professores, fosse no balcão da padoca em frente ao colégio. Era um acordo tácito: por uma vida menos ordinário, riremos todos, esqueceremos tudo e lembraremos depois.
Tinha o JB, que dava aula de matemática. Ele não tinha muito senso de humor e provou isso quando tomou meu mapa, que continha uma teoria que provava que, se alguém puxasse a corrente de Humbolt bem forte, tirava o tampão oceânico do lugar e, em questão de semanas, a Terra virava um deserto inabitável. Mais que isso, botou o Duda e eu pra fora da sala e a gente NUNCA conseguiu reaver o mapa.
No cursinho, anos depois, era aula de química e o gordo do Salvador pergunta qual o outro nome do cal-virgem e eu nem pensei antes de gritar: "CALBAÇO!". Tem uma foto dele no mural do meu quarto com uma seta apontando pra ele: "o gordo que me ensinou química". Naquele dia, porém, cada vez que ele olhava pra minha cara, ele tinha uma crise de riso.
Teve a Magda, professora de inglês da oitava série, que resolveu dar ZÉ-RÔ pro fundão todo se o cara que tinha jogado perfume de velha na sala toda não aparecesse imediatamente.
Ela NUNCA ia entender.
Não era UM perfume de velha.
Era uma batalha épica entre TODOS os desodorantes fedidos da classe que culminou com uma rajada de caximirbuquê por trás do ventilador central, o que pulverizou a fedentina de uma maneira tal que O MUNDO fedia perfume de velha.
Olhei pro lado.
Tinha o Casalzinho. Ele precisava de 9.5 de inglês.
Diagonal pra direita, o James "Buster" Douglas: precisava de 11.
Na minha frente, o Muca (e ele era o campeão): precisava tirar 13 pra passar de ano em inglês sem recuperação.
- "Fui eu, piçôra...", eu disse meio encabulado e temeroso. Ela precisava disso pra que ela começasse a exercer a autoridade dela do jeito mais sádico que sabia.
- "Ah, sim... Eu já imaginava que teria sido o senhor. Olha, senhor Fernando... eu quero, pra AMANHÃ (ela enfatizou bem o AMANHÃ), um trabalho sobre cada um dos principais pontos turísticos dos Estados Unidos (nessa hora, eu bocejei, o que a deixou bastante furiosa) com NO MÍNIMO 50 páginas - uma para cada estado - com, no mínimo três pontos turístpra cada estado. Valendo DEZ. AMANHÃ!".
Tendo acabado de aprender sem querer que os Estados Unidos tem 50 estados, eu murmurei com uma dor fingida.
- "Pra amanhã? Eu não sei se dá tempo...".
- "Não é pra dar tempo mesmo. Você tem mais que tirar ZERO".
Não é a autoridade que eles têm, mas é o uso que eles fazem dela que me irrita.
- "Tudo bem, piçôra. É zero, né? Eu já fechei na matéria da senhora no bimestre passado".
Por uma vida menos ordinária, eu levantei a cabeça e sorri sem mostrar os dentes, porque seria indelicado gargalhar e, se não sorrisse daquele jeito, quase pedindo desculpas, estaria aparentando uma autoridade que não tenho. Nós somos todos um monte de bolinhas de sabão soltas no meio da pista expressa da Marginal do rio Pinheiros. Qualquer movimento mais forte e ... já era.
Quando ela piscou os olhos bem lentamente, voltou para a mesa dela e recomeçou a chamada , a classe ria... eu ria, por dentro, mas ria... e acabei passando pro primeiro colegial.
A professora Magda, no entanto, continuou na oitava série.
Dando aula de inglês.
Morta.
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