21.7.08

Any Woman Blues




Tem uma trufa em cima da mesa. Uma trufa de capuccino num mundo de capuccino. Carlton Capuccino. Uma caneca de capuccino fumega ao meu lado. Al Pacino olha pra mim, do alto da estante de VHS que quase despenca. Mereço o cigarro, a caneca de capuccino e mereceria caso os filmes todos despencassem em cima de mim durante a noite. A trufa, porém, eu ainda não mereço. Ela pede que eu conte uma história antes.
O papel pede.
Não sei se posso e este é um teste.
Esses dias, foi aniversário da Déa e eu amo a Déa. Amo de um jeito tão amplo, que todos os meus amores cabem nela, mas ela, a Déa, é grande demais pra amores avulsos. Meu amor pela Déa é maior que paixões súbitas e ainda maior que ódios perenes, como o que eu sinto pela afetação pseudo-enlevada cheirando a creme rinse que alguns cantos da Vila Madalena têm. Por isso, por amor, fui até aquele bar. Um bar lindo como bares não deveriam ser - exceto naqueles filmes que não tenho mais saco pra assistir. Tive oportunidade de me perder pelo caminho, mas não me perdi. Por amor. O amor seria a única recompensa e imediatamente a recompensa veio. Veio quando a Déa abriu aquele sorriso que vale um mundo (com pessoas, animais, árvores, terra, ar e tudo) e me abraçou com a alma.
Fora Déa, tinha o Gui, com quem é sempre um prazer dividir história e que me contou que passou carão numa aula porque não lembrava qual era o nome daquela árvore que dá azeitona. É bem provável que ele lembrasse o sobrenome da Luma, mas o da a árvore que dá azeitona não. E tinha o Mauro, que sempre me maravilha com sua generosidade para com a beleza e nunca entende minha pouca paciência com a insistência de certas belezas em se manterem em pé por si próprias. Sorrisos largos sem nada dentro pedindo "se você gosta mesmo de mim, faz o que eu tô te pedindo porque eu sou linda e você está bêbado".
Escrevi um bilhete sério para a Déa e aquela música do Bob Dylan em que ele diz que não faz sentido ela chamar pelo nome dele começou a tocar num loop contínuo dentro da minha cabeça e minha cabeça não pensou duas vezes: está tudo certo.
É preciso que se entenda que o mundo com a Déa é um mundo todo e, sem ela, é um mundo. Só. Um mundo sem a Déa que, feliz ou triste, é o mundo em que eu passo a maior parte da vida. É um cruzeiro de luxo pelo mundo que me toca e, de repente, eu estou no cais do porto, acenando com um recibo de 20 reais para um abraço que mesmo daqui, de dentro da memória, ainda me derrete os ossos, mas agora vive em um navio que partiu e já fumega, longe no horizonte.
Vou dar uma volta pela rua.
Tirar fotos porque existem fotos que valem como troféu de batalha.
Tiro uma encostado num carro, com o Matrix do outro lado da Rua.
A foto não registra a música que tocava lá dentro e o tanto que o deus das trilhas sonoras anda cumprindo com sua função - "Are You Gonna Be My Girl?", do Jet - meu sangue não esquece.
Como um CDF que achou a prova fácil demais, eu saio da sala como quem resolveu tudo. Uma voz de criança corre e grita no meu encalço. Aquilo me lembra "Shane" e eu não quero me virar e olhar pra trás porque não quero que a pequena Michelle me veja sangrando.
mas... eu... eu... eu...
Eu não estou sangrando, porra.
A pequena Michelle vendia chicletes nas mesas das calçadas.
A pequena Michelle devia ter 6 ou 7 anos e não está calçada.
A gente ficou brincando de arremessar cartões pra todos os lados. Ela arrumou um monte daqueles postais de propaganda, dos mais feios e mais inúteis e a gente jogou em todo canto. Jogou em cima do toldo do bar onde eu estava. Jogou nos carros. Jogou pra dentro de bares onde não tinha ninguém conhecido. Jogou num carro de polícia. Jogou um no outro. Jogou, jogou e jogou. E deu risada até o rosto e a barriga doerem. Os seguranças dos bares não brigavam com ela porque era claro e evidente que era o marmanjo aqui que estava causando e, se eles não reprimem a afetação pseudo-enlevada cheirando a creme rinse que alguns cantos da Vila Madalena têm, porque é que eles iam reprimir aquilo?
A pequena Michelle gritava histérica, numa alegria legítima de menina de seis ou 7 anos que arrumou um amigo novo. Embora não fosse histérica nem gritasse, a alegria do marmanjo de barba na cara e quase 32 anos nas costas que via felizes aqueles olhinhos estrábicos era tão legítima quanto a dela.
Uma amiga nova.
A pequena Michele só queria me dar um "tchau" decente. Ela é uma nova amiga nova e ainda não se acostumou com o repugnante hábito de dar as costas e ir embora que a civilização vai inculcando dentro da gente.
Liguei o timer da máquina, botei em cima do capô de um carro estacionado e nós tiramos três fotos juntos. Prometi pra ela que outro dia ia levar as fotos impressas pra ela ver melhor. Deu vontade de comprar todos os chicletes dela. Deu vontade de parar tudo e viver pra sempre em um mundo de verdade.
Fui pra casa e, antes de dormir, fui obrigado a ouvir um sermão do senhor Campbell a respeito de bem-aventurança. Depois, dormi um sono inquieto dentro de um útero felpudo de cobertores mudos e sonhei que estava sangrando, mas não sabia por onde. Sonhei com a Déa, com a festa da Déa, com pessoas que não estavam lá e com a pequena Michelle, correndo e gritando a única palavra que ela sabe que eu entenderia - "SHAAAAAAANE!!!" - ao que eu respondo:
- "SHANE É O CARALHO!".
Tenho certeza absoluta: o sangue não é meu.
Por outro lado...
A trufa de capuccino é.
Share:

1 comentários:

Marillee disse...

Nesse texto eu chorei.