30.6.08

A primeira de Ilha Bela




Os verões que mais me valeram a pena foram aqueles em que, quando tudo começou, eu tinha certeza absoluta de que já estava morto e terminava numa reviravolta tão absurdamente boa que me dava vontade de sentar no meio-fio e me perguntar se Deus não podia descer do Céu de repente e, depois de gritar "PEGADINHA!!", desaparecer além dos portões do éden enquanto eu acordo do sonho pra um mundo em que ainda não morri, mas sangro aos borbotões e um abutre come minhas entranhas que sempre - sempre - se regeneram.
A gente tinha ido passar o fim de ano em Ilha Bela. Era a primeira vez que eu ia praquele canto do mundo e, se tivesse pensado por um segundo mais, não estaria lá. Mas eu estava. E estava sentado na varanda da casa que a gente tinha alugado pensando se não era o caso de contar pra todo mundo que eu estava fodido, já que só me restavam 10 reais nos recursos do tesouro nacional e eu recém tinha completado 24 horas de estadia. Faltavam 8 dias até o dia de ir embora e o que eu tinha era 4 maços de Marlboro vermelho, um cartão telefônico miado e um isqueiro Bic verde que já tinha acendido suas três mil vezes e nós discutíamos de quanto seria aquele "ou mais".

Hit it.

Claro: eu estava bêbado como um gambá e eu olhar se perdia na direção da praia até encontrar o Cabeção fazendo sinais na nossa direção e respondi. Ele gesticulava para que eu fosse até lá, sem indicar urgência nem nada. Um convite. Mesmo enxergando o mundo como Noé, aos pares, fui.

Isso foi na passagem de 1999 pra 2000.

Foi em 1992 que a Lysandra propôs que nós todos passássemos juntos o Reveillon do ano 2000. A gente achou legal e topou, sem dar atenção pro resto da frase dela, em que ela sugeria que a gente passasse juntos, ali, no condomínio onde a gente morava. Naquele momento do pretérito que foi futuro, eu ainda não tinha reparado, mas ia reparar. A gente sempre questionou a união das meninas que tinham crescido perto de nós e aquilo, sem querer, provou algo. Estávamos todos nós lá, amigos e juntos, no Reveillon do ano 2000 e sabíamos que aquelas meninas que tinham crescido com a gente, tinham terminado de crescer sem nós e poderiam estar em qualquer lugar, mas certamente não estavam juntas, na avenida central do condomínio onde a gente morava. Por isso, lembro bem que esse foi o Reveillon de 2000. Porque, depois que a gente sacou o que havia acontecido, que a gente tinha cumprido uma promessa ingênua e esquecida tão naturalmente, tão sem esforço ou sacrifício, a gente tinha permissão pra ser a partir do ano 2000 o que a gente sonhou que seria naquela noite de 1992: bons e velhos amigos.
Também lembro que foi no reveillon de 2000 porque foi quando o Cabeção levou o jet-ski. Lembro porque fui no mesmo carro que ele e lembro, também, porque foi aquele jet-ski que quase me matou e, mais ainda, porque é disso que eu estou tentando falar.

Foi um longo caminho da sacada até a praia.

Primeiro, tive que enfrentar a compensação ao mudar de posição. Passar pra vertical não é tão fácil e, quando a posição ereta parece quase impossível, alguém dentro do meu cérebro berra pros meus joelhos deixarem de viadagem e a gente segue em frente, eu, eu mesmo e Irene, uma preta gorda vestida de anjo que voa sobre a minha cabeça e, às vezes, consegue impedir que eu faça alguma merda mais grave.
Por merda mais grave, entenda-se aquilo que eu estava prestes a fazer depois de encontrar com o Igor. Em estado não muito melhor que o meu, ele brincava de surfar, se equilibrando em cima da corrente da garagem. Talvez eu dê azar, porque, assim que eu passei pela corrente, ele caiu e bateu com a cabeça no muro. Ou talvez eu tenha tropeçado na corrente sim.
O fato é que eu segui meu rumo enquanto ele chacoalhava a cabeça, o que era uma prática perigosa naquela época, porque ele tinha dreads no cabelo e eles podiam furar seus olhos.
Eu não lembro se tinha carro passando na rua quando cheguei do outro lado, porque eu só tinha olhos para os dois policiais que me olhavam com olhos de quem já tinha visto todo tipo de turista bêbado e eu era só mais um - e nem era dos perigosos.
Eles não sabem o que é perigo.
E eu sem chinelo naquela areia branca, fofa e inflamável que tem no começo da praia, andando que nem siri em alta velocidade na direção da água.

Ainda me lembrava da noite passada, em que todo mundo bodeou e só o Cabeção, o Torneira e eu fomos para o centro de Ilha Bela. A gente tinha acabado com uma garrafa de whisky inteira e o Torneira tinha feito jus ao apelido e se mijado inteiro na porta de uma sorveteria e, depois, sentou com a bermuda - ainda molhada e fedendo uréia - no banco de trás do carro do Cabeção. O Cabeção só ficou mais puto quando eu fiz ele parar o carro e botei uma menina e oito crianças pra dentro do carro. A menina foi comigo no banco da frente e as oito crianças se empilharam em cima do Torneira. O Torna estava naquele estágio em que não há mais necessidade de palavras e, na certeza de se tratava de pigmeus e não crianças, só gritava "bugabugabugabugabuga" com elas. Quando a gente deixou todo mundo na balsa, deu até medo: as crianças gostaram tanto do Torna bebum que, quando ele berrava aquele "bugabugabugabugabuga" elas todas dançavam em volta dele e faziam o mesmo "bugabugabugabugabuga" que ele, desencontrado, e parecia uma tribo de pigmeus reverenciando seu líder.
Aquela seria a primeira vez que eu vi um bêbado transformar o mundo na sua própria alucinação e o mundo concordar com aquilo.

Mas não seria a última.

Quando vi o Cabeção gesticulando, ele estava bem na beirada da areia, o jet-ski borbulhava na água mais adiante e ele segurava um colete salva-vidas laranja. Já cheguei vestindo aquilo, na maior coragem e fui seguindo ele na direção do jet-ski, mar adentro. Foi então que ele me mostrou uma bóia inflável, do tamanho de um morey e até achei que seria legal pegar onda com ela. O Cabeção, no entanto, parecia mais interessado no jet-ski e nós subimos ao mesmo tempo. Ele no jet-ski e eu naquela pranchinha.
Olhei pra pranchinha e já me perguntava porque é que eu deveria usar colete salva-vidas se ia ficar ali, brincando com ela, quando ele arrancou com o jet-ski.
Muito lentamente, as peças foram se juntando na minha cabeça. Notei que tinha uma corda forte amarrada no jet-ski e, quando percebi que aquela corda era da mesma cor e do mesmo tamanho que a que estava amarrada no bico da pranchinha, por algum impulso inexplicável, me agarrei a ela. No momento seguinte, quando dei por mim, já estava sendo arrastado aos saltos pra dentro do mar infinito.

Estivesse você no meu lugar e você saberia: o medo supremo e absoluto é equivalente à coragem absoluta e suprema.

Eu estava lá, agarrado a uma ínfima bóinha, quicando em cima da água, com a bermuda descendo até os joelhos e a bunda branca exposta ao sol e você talvez pensasse que minha coragem era soberba. Ali, do lado de dentro de mim, num medo que beirava a retenção anal completa, meu estômago parecia ter ficado do tamanho de uma pipoca, meu saco escapava das ondas menores, mas se estabacava nas ondas maiores e eu ainda não fazia idéia do que aconteceria quando o Cabeção e o jet-ski fizessem a primeira curva.
Quando ele virou pra esquerda, a pranchinha quase se desgarrou para a direita, mas eu não soltei as mãos. Tive que chutar as ondas com o peito do pé e manter o resto do corpo reto, escapando assim das ondas, que vinham em saraivada.
Foi nesse momento que vi que todos os trecos e pandarecos que eu tinha amarrado nos pulsos já eram propriedade do mar. Só meu relógio continuava lá. Ele era daqueles pra quem faz esportes radicais e aquela foi a única vez em que ele foi realmente posto à prova.
Então, abri a boca e gritei, com toda a força proporcionada pelo terror:

"EU VÔ MORRÊ!”

Quando o Cabeção terminou a curva e eu continuei agarrado à prancha, veio uma acintosa euforia, como se a morte - ou algo parecido com ela, algo como o medo - tivesse sido vencido. Aí, mudando um pouco o discurso, passei a berrar: "Pau no seu cu, Netuno", como se eu tivesse feito um gol no time da casa dentro da própria torcida.
Então, veio outra curva, num lugar que, no meu vocabulário, podia ser chamado de "oceano".
Num pequeno soluço, soube: tudo estava fodido.
Era só uma suposição, mas que logo virou certeza quando o jet-ski do Cabeção, lá na frente, deu a volta por cima das ondas que ele mesmo tinha criado.
Era uma questão de tempo - pouco tempo - até que eu tivesse que passar lá também.
A primeira onda me pegou em cheio, no meio do corpo e, se eu não estivesse com os ouvidos cheios d'água, ia jurar que o barulho era de alguma coisa estourando.
Consegui chutar uma segunda onda e consegui também o que parecia impossível, trazer a pranchinha para perto do peito.
"Tô pegando a manha", pensei.
Foi quando a terceira onda me fez decolar.
Num segundo, eu estava no ar, olhando as pessoas distraídas na praia, indiferentes aos meus berros, imersas nos seus mundos e me perguntava que diabos elas poderiam fazer por mim.
Noutro segundo, eu estava debaixo d'água e respondia: "nada".

Nada.

Puxei minha bermuda de volta pro lugar.

...

O silêncio do fundo do mar.

Não estava tão fundo, mas a água era tão gelada que sequer dava pra imaginar o que seria fundo.
O colete salva-vidas fez o seu papel e me levou para cima rapidinho. Eu Não estava mais bêbado. As idéias estavam claras como o dia e, deitado ali n mar, de barriga para cima, para onde quer que eu olhasse só havia céu - azul como eu queria que a vida fosse.
Ouvi o ronco do jet-ski e o Cabeção me perguntou se estava tudo bem.
Levantei o polegar dizendo que sim.
Depois, levantei o dedo médio, dizendo que não.
Então, afundei a cabeça na água e na certeza de que eu definitivamente não sabia.
Meu corpo estava surrado e extenuado.
Não consegui mais firmar as mãos na pranchinha de modo que a brincadeira ficou por ali e ele me arrastou lentamente para praia. Meu pavor era tanto que não larguei da pranchinha enquanto não senti a areia debaixo dos meus pés e, quando isso finalmente aconteceu, tive a nítida sensação de que alguma coisa estava mudada.
Para sempre.
Devolvi o colete para o Cabeção e, bem devagar, fui saindo do mar. Mergulhei com uma onda que vinha e deixei que ela me levasse até onde pudesse. Dentro dela, a água massageava meus músculos que se soltavam, relaxados, todos de uma vez. Sentia os grãos de areia ciscando minha pele e, então, levantei e caminhei até a areia.

Olhei à minha volta.

Tudo parecia mais quieto, mais lento e um pouco mais brilhante. Era saudade que eu sentia daquele lugar - um lugar que eu conhecia há pouco mais de 24 horas e tinha abandonado só por uns minutos. Tremia, mas não sentia frio.

Sentei na areia, de frente para o mar.

Lembrei do momento exato em que larguei e prancha e não houve o menor traço de dúvida: eu decidi largar.

Decidi.
Eu decidi.

Foi uma decisão simples e óbvia. Sendo arrastado para todos os lados, sendo surrado pelos punhos do mar, mostrando a bunda pra Deus, me pareceu claro o que era certo e bom.
Por isso, deixei a prancha ir e me deixei estar.
Então, lá estava eu, sentado com a minha vida toda, olhando para o mar.
Chorando, rindo e tremendo, eu olhava para o infinito do mar, lá dentro, eu via minha vida e, dentro dela, via mil outros fernandos teimosos, agarrados a mil outras pranchinhas, sendo arrastado para outro lugar.
Vários deles me perceberam olhando e soltaram-se todos, afundando no mar.
Pouco a pouco, um por um, eles vieram chegando e sentando-se ao meu lado a areia, depois de um breve cumprimento com a cabeça.
Cada um deles trazia um pedaço da minha vida de volta pra mim.
Juntos, nós ficamos observando os outros fernandos - aqueles que não largaram suas pranchas - sendo arrastados e surrados.
Nós adorávamos aquela suprema coragem e, mais ainda, a ingenuidade absoluta de adiar o inevitável.
Todos os fernandos que vieram pra terra estavam lá comigo e riam do tombo inevitável que aguardava cada um dos fernandos do mar após a primeira (ou segunda?) curva.

Só havia um fernando que chorava.

Era aquele que sabia que também era inevitável que, um por um, todos aqueles fernandos da terra arrumassem outras pranchinhas - todas elas lindas como sonhos - e fossem, novamente, arrastados para o mar.
Dizem que eu fiquei mais de duas horas ali, sentado na areia, olhando perdido para o mar.
Não olharam direito.
Se tivessem olhado, iam saber.

Eu ainda estou lá.
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2 comentários:

Kakaya disse...

Huahuahau!
Mas essa mistura toda de sentimentos no fim é boa!Só no fim, quando tudo se assenta!rs!

C. K. disse...

descobrir-se também é perder-se. é perder o que ocupa espaço demais, onde outros eus deveriam estar.

as decisões mais importantes vem nos momentos mais inesperados e pequenos aos olhos dos outros - mas dentro se percebe o que acontece (pois só nós é que podemos ver o lado de dentro, muito obviamente), e é daí que jorra tudo o que vem depois.

texto maravilhoso.