26.5.08

A personagem de cinco centavos


Estava no Bar do Norte, no meio da festa de aniversário da Calu e ela apareceu na minha frente. Primeiro, eu só notei o casaquinho roxo e absolutamente nada de bunda. Zero. Niente. Parecia que alguém tinha batido a gaveta com muita força por ali. Ela ia de mesa em mesa e eu acho que, nos primeiros instantes, eu achei que ela poderia ser amiga da Calu ou algo assim. Não era. Virou o rosto e fixou os olhos azuis em mim. Azuis e tristes. Parecia os olhos da "Drowned Girl" do Kurt Weil. Um deles estava roxo. Certeza.
Quando ela começou a falar comigo, bem baixinho, eu não entendia picas. Ela mostrava uns cartões de peças de teatro, que ela provavelmente tinha pego na bilheteria de alguma peça. A gente tava na Bela Vista. A Roosevelt é ali do lado. Dá pra fazer uma coleção de mil em um fim de semana.
Claro!
Miudinha, roupas esquisitas, olhos azuis, dialeto estranho. Ela contava naquele dialeto que estava fazendo uma peça de teatro e precisava de ajuda. Ao invés de dizer "que coincidência: eu também!" pra ela, decidi que ia rir por dentro até explodir - foda-se se explodisse - e ver até onde isso ia.
As pessoas todas me chamavam o nome, tentando me alertar contra ela que, segundo eles, era uma pedinte profissional. Eu não entendia porra nenhuma que ela me dizia, mas, em algum canto no fundo dos meus olhos, alguma coisa se retorcia de rir.
Claro... Era um hobbitt!
UM HOBBITT!!
Ela falava comigo e eu pedia licença, chamava alguém e dizia baixinho que os hobbitts estavam montando uma peça de teatro.
A Calu, o Bruno e a Poliana acharam engraçado. O Ivon não tinha assistido "Senhor dos Anéis".
Ela terminou sua explanação, a parte de mim que me mantinha sério ficava se controlando pra não perguntar se perguntar se, na escola de teatro dos hobbitts não se falava nada a respeito de empostação vocal. Claro que era queria dinheiro. É claro que eu ia dar dinheiro pra hobbittzinha. A questão que iluminava os olhos dela era "quanto?".
O quão trouxa eu poderia ser?
Vasculhei a carteira, deixei entrever as duas notas de dez que tinham lá dentro, abri o compartimento de moedas. Foi quando ela me disse, com uma voz de que aprendeu sim o que era empostação vocal na escola de teatro dos hobbitts, "se PRECISAR eu tenho TROCO". Como se fôssemos dois imbecis, eu expliquei pra ela detalhadamente, pedindo desculpas, que só ia poder dar cinco centavos porque os vinte reais eu ia ter que usar pra pagar a conta e, por isso, não podia dar nem mais nem menos.
No canto claro, portando pálidos olhos azuis, a hobbitt do casaquinho roxo e nada de bunda.
No canto escuro, guiado pelo seu próprio poder duplicado de acordo com a edição 2005 do calendário (tim) maia, um miserável profissional.
Comprei um cartão de um espetáculo - que nem está mais em cartaz - por cinco centavos.
O Ivon acha que a hobbitt é desprezível - não por ser uma hobbitt - por usar o nome do teatro pra pedir dinheiro.
Ele acha que é um desserviço ao teatro.
Eu acho que sim, mas, também, acho que não.
Afinal, eu paguei.
Cinco centavos, é verdade. Mas paguei.
E ela me fez rir mais do que muita peça que eu não paguei nem cinco centavos pra ver e, nem por isso, me vejo no direito de reclamar.
"Ela ajuda o teatro", eu disse.
"Ajuda? Como, cara... COMO??", retrucou o Ivon indignado
"Ela é uma personagem. Uma personagem de cinco centavos, mas uma personagem".
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