29.5.08

Brilhe, Você, Louco Diamante


"Shine On You Crazy Diamond", do Pink Floyd, é uma música com uma história única na minha vida. Eu sabia que a letra dela tinha sido feita para Syd Barrett, vocalista original do Floyd. Eu amava a letra. A música tem duas partes, uma de cada lado do disco "Wish You Were Here". Eu topei com a letra uma vez, li, fiquei apaixonado por ela e escrevi num papelzinho bem pequeno. Esse papelzinho bem pequeno, era do tamanho das colas que eu fazia em provas de química, física, matemática.
Peguei esse papelzinho, dobrei bem dobradinho e coloquei dentro de um chaveiro em que eu levava a chave de casa. Sempre que eu ficava sozinho, inapelavelmente sozinho, eu abria aquele papelzinho e lia aquelas palavras. Era a minha cola para a vida.
Era naqueles momentos "e agora, José?"... A luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou... Está sem mulher, sem discurso, sem carinho, não pode beber, não pode fumar, cuspir não pode... Que bode, José!
O que eu entendia da letra, era mais ou menos isso:

"Lembra de quando você era jovem?
Você brilhava como o sol.
Brilhe, você, louco diamante.
Agora há um olhar nos seus olhos,
como nuvens negras no céu.
Brilhe, você, louco diamante.
Você foi pego no fogo cruzado
da infância com o estrelato,
arrebentado pelo vento de aço.
Vamos, você, alvo para risos distantes.
Vamos, você, estranho,
você lenda,
você, mártir...
e brilhe!

Você buscou o segredo cedo demais.
Você chorou pela lua.
Brilhe, seu diamante louco
Ameaçado pelas sombras à noite
e exposto à luz.
Brilhe, você, louco diamante.
Bem, você esgotou suas boas vindas
Com precisão casual
Cavalgue a brisa de aço.
Venha, você, pregador
Venha, você, visionário
Você, pintor
Você, gaiteiro
você, prisioneiro
e brilhe!

Ninguém sabe onde você está
O quão perto e quão longe.
Brilhe, você, louco diamante.
Amontoe muitas camadas mais
E eu me juntarei a você em breve
Brilhe, você, louco diamante.
E nós vamos nos aquecer à sombra
do triunfo de ontem
E navegar a brisa de aço
Seu vencedor e perdedor..
Vamos, você,
escavador de verdade e desilusão
e brilhe!"

Estas são as duas partes da música, ou, pelo menos, o que estava escrito naquele papelzinho que vivia dentro do meu chaveiro, sempre pronto para emergências existenciais.
Ah, sim...
E um detalhe: eu nunca tinha ouvido a música.
Não.
Nunca.
Tenta entender, vai...
Eu amava aquela letra.
Só que morria de medo de, de repente, a música por trás dela não ser tudo aquilo que eu esperava.
Então, eu fugia.
Nunca comprei o disco "Wish You Were Here" de propósito. Por causa disso.
Já estive em lugares onde alguém ameaçou colocar o disco e eu simplesmente inventei uma desculpa qualquer e saí pela porta, fui comprar cigarros, fui ver a rua andar, fui sentir a brisa de aço na cara, fui chorar pela lua.
Acho que ninguém nunca percebeu.
Outra vez, num outro estado, fiquei com medo de que alguém descobrisse isso e, sempre que eu chegasse, ameaçasse colocar o disco pra tocar, só pra ver o que acontece. "Wish You Were Here", o disco, era minha kryptonita, sabe?
Aí, de repente, quando você não está olhando, a vida vem e te arrasta.
Já passava das cinco da manhã, que na verdade eram quatro, porque o horário de verão estava recém começado. Estávamos todos em volta de uma fogueira, na seca-seca-seca represa de Guarapiranga. O último teco de carne tinha acabado de sair do fogo e a gente não tinha muito mais o que fazer ali, além de limpar todo o lixo e contemplar a possibilidade do sono dos justos.
Você sabe o quanto uma fogueira pode hipnotizar, não sabe?
A gente tava lá, em volta dela, quando eu dei aquele peculiar suspiro de "bom... eu vou pra casa". Eu tinha que avisar antes de ir, porque meu carro estava servindo de cama para duas pessoas e, simultaneamente, fornecia o som ambiente: rádio.
Aí, um som de guitarra.
Aí, a lenha estala na fogueira.
Aí, o Américo diz: "deixa rolar só mais esse som".
Ele nem tirou os olhos da fogueira pra dizer aquilo. As palavras foram aquelas, mas a parte mais importante da mensagem já estava comigo. Ele e eu já tínhamos conversado a respeito, quando fomos visitar os frutos da seca.
As vezes, a morte dá uma aparência linda para as coisas. A gente, ele e eu, reparou isso quando chegou perto da beira da represa e deu com aquele cenário que parecia o pântano de tristeza do filme "A História Sem Fim". Veio inspiração pra filme, veio inspiração pra fotos, veio inspiração pra poesia, mas nada supera aquela frase que ele me disse: "A gente tem uma sorte do caralho".
Foi ela que me veio quando ele pediu pra gente esperar a música terminar antes de levantar acampamento. A gente tem sorte sim. Tem sorte de ter comido aquela carne dura, lavada na cerveja, porque teimava em cair do espeto pra dentro das brasas da fogueira. A gente tem sorte de ter estado lá, com aquela lua que sorria como o gato de Alice. A gente tem sorte de ter tido aquela oportunidade de deixar o tempo se desenrolar, olhando a fogueira, hipnotizados.
Veio uma daquelas frases de quem emerge pra lucidez, de repente, ou se assusta diante do seu reflexo: "vocês estão viajando demais".
Ninguém respondeu.
Ninguém queria voltar para a terra.
Aliás, sejamos justos: ninguém nem notou.
Eu lembro vagamente que alguém disse isso, mas sei que alguém disse. Éramos seis. E eu não lembro, de jeito nenhum, quem foi que disse aquilo.
E eu estava lá.
Eu não estava lá.
Naquele momento, eu estava na idade da pedra, pensando no que aquilo - estarmos juntos, olhando para a fogueira depois de comermos, juntos.
Naquele momento, eu estava pensando no filme, que podia terminar assim, com todo mundo olhando para a fogueira.
Naquele momento, eu estava dançando em volta da fogueira com uma menina que esconde gavetas atrás dos olhos
Naquele momento, eu estava brincando com as minhas tartarugas no quintal da casa da minha avó Maria..
Naquele momento, eu estava olhando para o rosto das pessoas que estavam comigo e vendo expressões demoníacas e angelicais, ao mesmo tempo.
Naquele momento, eu estava sentindo uma vontade enorme de tirar a gaita do bolso e começar a tocar. Naquele momento, eu estava com uma vontade enorme de tocar violão, mesmo não sabendo tocar.
Naquele momento, eu quis saber tocar violão e quis ter um violão que se mantivesse afinado por uma música inteira.
Naquele momento, perdido na música, eu me lembrei do chaveiro, lembrei do papelzinho, lembrei...
"Shine On You Crazy Diamond"...
Aí, finalmente, eu reconheci a letra por trás da música que estava me hipnotizando completamente.
Minha vida passou como um filme, diante dos meus olhos.
O meu filme.
Um sonho morre quando a vida toma o lugar dele.
A "Shine On You Crazy Diamond" dos meus sonhos morreu para sempre, mas, às vezes, a morte dá uma aparência linda para as coisas.



(texto originalmente publicado aqui)

Let it be, Mary B.
Let it be.
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