19.8.20

AVE, MAGUILA



O dia do meu aniversário em 1995 foi um negócio fora de série. 
Faz 25 anos, mas não é isso que me faz lembrar desse dia. 
Naquela época, eu sempre comemorava meus aniversários no mesmo karaokê, que chamava Desafinado e não existe mais. 
O dono do lugar, um bigodudo gente boa que a gente apelidou de Belchior (por isso, ninguém lembra o nome dele) adorava quando a gente aparecia por lá. 
Um ano antes, não sei como, quase cem pessoas foram na festa do meu aniversário, no mesmo lugar.
Era um espaço tão pequeno que, quando foi vendido para o hotel vizinho, virou estacionamento do estabelecimento e, quando passo pela rua, quase dá pra ver o palco onde a gente fez tanta merda. 
Se foi um milagre que cem pessoas tenham se espremido lá em 1994, foi mais louco ainda em 1995 – quando a gente levou quase o dobro de gente. 

 Ao mesmo tempo, tinha uma coisa que me deixava cabreiro porque, naquele mesmo dia da festa (marcada pra 19 de agosto, um sábado, porque meu aniversário é dia 20) era o dia em que Mike Tyson fazer sua primeira luta depois de ter saído da prisão e eu não poderia deixar de assistir à luta. 
Veja bem: o ano era 1995. 
Não tinha internet, não tinha YouTube. 
Mal e mal tinha TV a cabo. 
O Léo que era meu grande amigo da faculdade, era um dos poucos caras que tinham TV a cabo e, como presente de aniversário naquele ano, ele me deu uma fita VHS com seis horas só de Pernalonga e Patolino que ele gravou no Cartoon Network. 
Não era só isso: o Marcelo, amizade que vinha dos tempos de colegial, era meu grande parceiro de aventuras e tinha arrumado uma câmera de vídeo e, desta vez, a gente ia conseguir filmar a festa direito. 
Um ano antes, com a câmera da Patty, a gente teve sérios problemas pra acertar o foco e, por providencia divina, creio eu, mal dá pra ver alguma coisa nas filmagens. 
Digo providência divina porque foi uma festa (a de 1994) em que os casais mais improváveis do mundo se formaram – inclusive, dessa festa, saiu um casamento e eu fui padrinho. 

Só que tinha esse lance da luta e, por isso, logo que a gente chegou no karaokê, antes mesmo de entrar, fui na recepção do hotel que ficava ali do lado e perguntei para eles se eles tinham televisão, se eles iam assistir à luta do Tyson e, por último mas não menos importante, se havia algum problema se eu deixasse a festa do meu aniversário e viesse ali pra assistir a luta com eles na recepção do hotel. 
Os caras acharam graça e responderam que claro que eu poderia e, assim, a festa começou e eu fiquei o tempo todo com um olho no peixe e outro no gato e, quando deu a hora certa, a gente foi pra lá em quatro pessoas: o Alex Muller (que hoje é um baita jornalista esportivo na TV), a Dri, a Bia e eu. 
A luta, em si, não passou do primeiro assalto – que era exatamente o que a gente esperava que fosse acontecer, mas a parte no vídeo em que isso acontece ficou registrada, em algum lugar, no vídeo daquela festa. 
Mais uma vez: o ano era 1995 e o filme preferido da gente era Pulp Fiction e, por isso, a gente não viu problema nenhum em meter um letreiro que dizia “o caso Tyson” no meio do vídeo da festa. 
Quando a luta acabou, a gente agradeceu e voltou para anunciar o resultado. 
Assim, o Pizza (como a gente chamava o Alex) anexou mais uma imitação para o seu rol impagável.
Agora, além do Evair batendo pênalti e do Tim Maia cantando “Azul da cor do mar”, ele também imitava o Peter McNeeley sendo nocauteado pelo Tyson. 

Na hora de cantar os parabéns, tinha uma outra mulher fazendo aniversário e um dos convidados dela fez um discurso interminável em homenagem a ela, imitando o Maguila. 
A festa terminou com o dia já clareando e a gente não deixou o Belchior fechar o karaokê antes de encenar uma versão de “We Are The World” com os últimos bêbados que restaram na festa, cada um imitando um personagem (todo mundo queria ser a Cindy Lauper) e, depois, a gente fechou a conta com um cappuccino no Franz Café da Antonio Tavares. 
Lembro de ter saído pra fumar um cigarro e ter visto uma cena que jamais vi de novo: o sol nascendo no horizonte, bem ao lado da lua, que ia se escondendo. 
Parecia uma daquelas cenas do começo de Star Wars, quando Luke ainda mora em Tatooine. 

Parecia que a festa tinha acabado ali, mas não. 

Como a maior parte dos meus amigos tinha ficado na festa enquanto eu fugi para assistir a luta do Tyson, a gente combinou outra festa para terça-feira. 

Quem diabos marca uma festa em uma terça-feira, você pode pensar. 

Camarada, veja bem. 

O ano, como eu já disse, era 1995 e, naquela terça-feira, dia 22 de agosto, Maguila ia disputar o título mundial dos pesos-pesados em Osasco e foi essa a luta que a gente combinou de ver, desta vez com todo mundo junto. 

O lugar escolhido foi um boteco sem nome que tinha perto do Júlio Pereira Lopes, o antigo colégio onde alguns de nós tínhamos estudado. Além de ser perto pra maioria, tinha mesas na calçada, alta tolerância para a nossa gritaria e tinha uma TV bem grande lá dentro. 

É engraçado pensar nisso hoje, mas, naquela época, a gente nem perguntou se os caras iam passar a luta do Maguila por motivos de É CLARO QUE ELES VÃO PASSAR. 

Hoje em dia a gente não lembra, mas, quando tinha luta do Maguila, era tipo jogo da seleção. 

Onde tinha TV, tava passando – precisava nem procurar. 
Era só chegar. 

 Em comparação com a luta do Tyson, a luta do Maguila foi mil vezes mais emocionante: um porque valia título mundial (pra gente, não interessava por qual entidade era – era um título mundial e pronto) e, dois, porque o adversário que o Maguila pegou, um inglês chamado Johnny Nelson, era BOM.

Lembro que, no meio da luta, um tiozinho pediu pra sentar junto com a gente na mesma mesa porque a gente tava torcendo de verdade pro Maguila e, pra ele, essa era a coisa certa a se fazer porque o Maguila era um de nós, estava representando o Brasil e porque, pra ele, o brasileiro tinha esse complexo de vira-lata racista e classista que tendia a diminuir o Maguila. 
Para exemplificar o que ele dizia, ele usava os argentinos como exemplo. 
Dizia que, se o Maguila fosse argentino, ele seria um herói como o Ringo Bonavena. 
A gente não conhecia o Bonavena, então ele explicou que, em uma luta que o Bonavena fez contra o Ali, o Ali escorregou e parecia que tinha levado um knock-down. 
Pros fãs argentinos, não tinha conversa: foi knock-down sim e, se o replay mostrasse o contrário, azar do replay, que é burro. 
Pra exemplificar o que falava, ele perguntou pra gente: quem ganhou naquela luta contra o Quebra Ossos? 
 Pra mim era óbvio: o Maguila ganhou. 
 Uns caras que tavam ali perto contestaram na mesma hora: a luta foi roubada, era pro Maguila ter perdido, ele só ganhou porque o Luciano do Valle comprou a luta e outras coisas do gênero. 
Enquanto os caras falavam, o tiozinho me olhava com uma cara de quem diz “entendeu o que quis dizer?”. 
A gente respondeu torcendo ainda mais alto pro Maguila. 
Na época, eu não era capaz de enxergar boxe como enxergo hoje e, se fosse, teria percebido que aquele cara que o Maguila venceu não era só bom e que, apesar de a vitória, ao meu ver, ter sido justa, ela foi extremamente difícil porque o Johnny Nelson era um cara muito técnico e muito difícil de acertar.
Naquela época, a gente não queria saber disso e ficou a luta inteira chamando o inglês de fujão e, depois do resultado, a gente fez uma carreata de um carro só e foi passando na casa de todo mundo que tinha dado o cano na gente para entregar jornal, uma delinquência juvenil moderada que consistia em arremessar pesados rolos de jornal velho na porta da casa de conhecidos (cujo ápice era quando a porta estava aberta e o conhecido em questão era atingido pelo chumaço de jornal). 

Faz 25 anos que isso aconteceu e, por mais que a luta do Tyson tenha sido no dia do meu aniversário, a festa mesmo foi quando o Maguila ganhou o título mundial. 

Agora, 25 anos depois, um dia antes do meu aniversário no ano de 2020, ainda me lembro do que aquele tiozinho falou pra mim no bar, depois que o Maguila já tinha vencido: “veja bem: daqui 30 anos, se as pessoas lembrarem da luta do Tyson, mas não falarem nada sobre a luta do Maguila, é porque o brasileiro não dá o menor valor para os ídolos que tem”. 

Na verdade, eu me adiantei um pouco. 

Não tive paciência para esperar até 2025, que é quando essas duas lutas completam 30 anos, e, agora, em 2020, terminei de escrever um livro que conta a história do Maguila e, junto com ela, tem também a história do Tyson, do Johnny Nelson (que é um dos caras mais importantes que existem hoje no boxe britânico), do, Foreman, do Holyfield e de uma renca de brasileiros: João Henrique, Servílio de Oliveira, Chiquinho de Jesus, Francisco Tomás da Cruz, Danilo Batista, Helio Santana, Peter Venâncio, George Arias e vários outros que sabem muito bem que a história do Maguila é a história de todos nós.

PS: É engraçado pensar que, poucos anos depois que o karaokê mudou de lá, abriu um espaço de boxe bem em frente, que foi a primeira vez que vi o projeto do Nílson Garrido. Quase vinte anos depois, Jack Welson, o cara que me ensinou a ver o boxe, a entender o boxe e me ajudou em cada letrinha que há no livro do Maguila treinava lá, no espaço que tinha atravessando a rua, debaixo do viaduto. 
Hoje em dia, o Garrido não ocupa mais o espaço, mas, em seu lugar, surgiu o #Complexo9, que tem tudo para se transformar no grande espaço de boxe ali no centro de São Paulo. 
  


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vivemos dias incríveis que não passam de ilusão


Foto de Mel Monteiro/Focka (CC BY-ND 2.0) - Citibank Hall (RJ), em 19.01.2013

Durante muito tempo, nos corredores da 89 — A Rádio Rock, tínhamos uma brincadeira só nossa: a gente olhava preocupado para o outro, dizia “meu, tu não sabe o que aconteceu...”. Esperava o “O QUE FOI, CARALHO?” antes de responder: “os caras do Charlie Brown invadiram a cidade”, igual na letra de O Coro Vai Comê.

Hoje, quando fiquei sabendo da morte do brother Chorão, foi dessa piadinha tosca que eu me lembrei.

Acho que eu fui o primeiro cara a tocar Charlie Brown Jr no rádio em São Paulo.

Talvez não tenha sido, mas falo disso porque o Chorão morreu e acho que talvez seja essa a lembrança mais legal que eu tenho a respeito do cara.

A época, eu trabalhava na 89 – A Rádio Rock e tinha assumido o lugar do Kid Vinil na tarefa de apresentar as novidades e os lançamentos pro ouvinte.
Eu entrava duas vezes durante o 89 Decibéis, que era o programa de maior audiência da rádio à época e começava às 18h.
Normal era eu estar com tudo pronto às 17h30, mas, naquele dia, meu chefe me chamou na sala dele e disse que a gente ia lançar uma banda nova, que se chamava Charlie Brown Jr e a música era O Coro Vai Comê.
Estas eram todas as informações que a gente tinha a respeito dos caras e eu fiquei desesperado.
Vou entrar no ar falando só o nome da banda e da música?
Jamais!
Fui atrás do povo da gravadora e eles me passaram o telefone de uma divulgadora que poderia me dar as informações que eu queria.

Entenda, camarada: Isso foi no meio de 1997 e, naquela época, era praticamente impossível achar textos sobre bandas brasileiras na internet.
Sobre bandas novas, então, nem pensar!
Liguei para a divulgadora e, pra minha sorte, ela estava com os caras da banda.

Eles todos ficaram sabendo que a 89 ia tocar a música deles e foram todos juntos ficar em volta do rádio para ver como é que isso ia rolar.

Era tipo final de Copa do Mundo pra eles.
Rolou um certo alvoroço com todo mundo falando ao mesmo tempo e o que eu pude pescar da gritaria acabou entrando no texto.
Lembro o começo dele até hoje.
Dizia que o Charlie Brown Jr era uma banda que tinha integrantes com nomes esquisitos.
O baterista era o Pelado (porque ele tinha o hábito de andar pelado quando era criança), o baixista era o Champignon (porque ele teve — mas não tinha mais — o cabelo parecido com um cogumelo) e tinha o vocalista, que era o Chorão, que tinha esse apelido porque era um cara emotivo e chorava por qualquer coisa.
Essas informações, junto como o nome do disco e o fato deles serem de Santos, conseguiram segurar meu texto pra introdução da banda que se tornaria parte da história da rádio.

Na real, esse texto acabou virando um problema porque ele ficou guardado no estúdio e foi lido à exaustão pelos locutores na época em que O Coro Vai Comê entrou na programação.

Um dia, cheguei na rádio com uma sanha de escrever uma dúzia de textos diferentes com informações novas sobre a banda só para evitar que os locutores ficassem massacrando aquele mesmo texto.
Como que por mágica, nesse mesmo dia, quando eu cheguei lá pra trabalhar, tinha um cara me esperando na recepção.

Ele se apresentou como Chorão e disse que estava lá para gravar material promocional pra rádio, aquelas vinhetas em que ele diz “Oi, aqui é o Chorão do Charlie Brown Jr e você está ouvindo a Rádio Rock” e coisas assim.

Lá estava ele: um cara normal, igualzinho a mim. Ansioso, ele ficou com medo de atrasar e chegou duas horas antes que todo mundo.
Eu fui com ele pro estúdio e a gente começou a gravar, conversar, dar risada e, aparentemente, tudo que ele queria saber era se as pessoas estavam gostando mesmo do som que ele e a banda estavam fazendo.
A resposta veio mais tarde, quando Transpiração Contínua Prolongada ganhou certificado de platina, vendendo 250 mil cópias, mas, naquela hora, minha resposta pra ele foi “cara, você não faz ideia: sua vida vai mudar pra sempre”.
Eu lembro das vinhetas que ele gravou comigo e elas eram bem bobinhas.

Logo depois, toda a alta produção da rádio foi até o estúdio acompanhar o cara e, com eles, veio o produtor Rick Bonadio, que mudou tudo que a gente estava fazendo, botando o Chorão pra improvisar hip-hop em cima das introduções.
O resultado ficou muito melhor do que aquele que eu tinha conseguido.
Ficou profissional, épico.
Se você ouvia a Rádio Rock naquela época, vai lembrar da introdução que ele gravou.

Não tem como esquecer.

 Eu queria ter tido a sabedoria de guardar aquelas vinhetas ruins que eu fiz, mostrando o Chorão inseguro, humano, fazendo piadinha e gritando que nem criança dentro do estúdio.

 Ninguém precisaria ouvir uma delas pra dizer que, para o bem ou para o mal, a vida mudou pra sempre depois daquele dia — e não foi só pra ele, não.

 Eu sabia que tinha ajudado a escrever o primeiro capítulo da história desse cara, mas a gente nunca faz ideia de que, lá na frente, vai acabar escrevendo o último também.

 (texto publicado no R7 em 6 de março de 2013, ocasião da morte de Chorão)
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