Memórias de um 2008 quase findo, quase lindo
Foi uma época louca essa. Acho que é assim que vai ser quando eu lembrar dela, uns vinte anos lá pra frente – se é que eu vou viver tanto assim. A peça estreou no dia de finados, lotada, com todo mundo querendo saber como é que foi. E a verdade é que foi bom. Foi bom pra caralho. Foi sofrido, foi doído, foi suado. Sobretudo isso: foi.
Imagina que a gente estreou e, de lá pra cá, três dos quatro integrantes do elenco mudaram de casa. Este é, provavelmente o último que escrevo aqui, com esse fundo verde e essa luz que me faz parecer cinema francês velho, que é uma coisa legal pra se parecer quando você está escrevendo. A gente muda e fica catando os estilhaços todos e mudando de lá pra cá. Cada vez mais, sinto que sou um outsider. Não porque quero, mas porque é uma fatalidade a que me condena meu temperamento – me é inevitável.
Acho que as melhores fases da sua vida são aquelas em que você pode dizer como no começo daquele livro famoso que começa com “foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. Porque é isso que foi. E é assim que sempre é. A gente busca sempre aquela faísca de glória que ilumina a vida toda. A gente trabalha e se mata a semana toda, pra poder bancar isso, de botar alguma coisa que realmente preste em cima de um palco e se dar ao luxo de sentir uma coisa que a gente sente todo dia, só que de um jeito evidente e profundo, pra que quem vê, sinta também.
Não é a graça de fazer piada no bar. É a outra parte, que essa graça não toca.
É aquela parte que é como viajar pra um lugar novo, descobrir uma vista daquelas que a gente põe de fundo de tela no computador e, quando olha pra foto, se sente até um pouco bem. A experiência real, só que simulada com seu consentimento. Só pra saber como é.
O foda é que foi esquisito. Lembro da noite de estréia, em que uma pá de coisa deu errado e, não obstante isso, o espetáculo saiu bom de um jeito que nunca mais vai sair. A casa tava cheia e a gente vibrou com isso e tudo teve muita força, uma força histriônica que é quase uma violência com quem tava assistindo, mas – tirando um husky siberiano – o resto das pessoas queria mesmo e ver no que aquilo ia dar. Acho que, naquele dia, foi como se a gente currasse nossos amigos. Por mim, tudo bem. Nenhum amigo meu foi na estréia. Os que foram, não foram porque eu convidei. Foram porque eram amigos dos meus amigos.
Minha vingança veio no fim de semana seguinte, no temido segundo dia. Foram cinco amigos meus. CINCO! Pode até dizer que CIN-CÔ não é muito, mas olha. Se não fossem MEUS ciiiinco convidados, teríamos só duas pessoas na platéia e seria ainda pior do que foi com sete. A Rose, a Calu, o Ugo, o Igor e a Ju foram pra Pizza Itália e esperavam pacientemente uma faiscante reunião de produção em que nos caiu a ficha de que estávamos fazendo uma peça independente e que, se não torrássemos o saco dos nossos amigos – pelo menos deles – a gente ia fazer uma peça pra ninguém. No fim de semana seguinte, havia um pesadelo no horizonte – um feriado! A gente sabe – todo mundo que faz teatro sabe – que feriados fazem pessoas viajarem e quem viaja não vai ao teatro. Então, a gente torceu pra que fizesse um tempo de merda – e realmente fez um tempo de merda – só que foi mais merda do que a gente esperava que fosse.
Foi quando fodeu tudo pra Santa Catarina.
A gente chamou reforço de todos os lados e eles vieram. Uma turma toda de alunos do Rene veio assistir. A Sônia veio e foi um espetáculo adorável.
Muito disso por causa do Rene, que marcou uma reunião na porta do meu prédio e falou tudo que tinha pra dizer. Não dava mais pra imaginar que a gente podia chegar lá, ir pro palco, sem ter botado a cara na rua. Ninguém tinha esse direito.
O Rene botou a gente pra ensaiar aqui, debaixo do minhocão, com Ogum de frente pra gente. Era um barulho infernal, que ficava na cabeça da gente mesmo depois, quando a gente ia pra cena. Tinham os próprios moradores de rua, que passavam pela gente e a gente imitava os tiques deles, a gente tentava sacar o poço sem fundo que é aquele olhar que eles aprendem a ter, a pele curtida, o casco nos pés, o capricho com as coisas e a cortesia – uma cortesia que só quem não tem porra nenhuma sabe ter.
A Sônia passou a ir direto e passou a chamar mais gente pra ir. Esse foi nosso terceiro dia. Brilhante e com um público razoável. Boa parte não pagou, porque a gente deu convite pra não correr o risco de não vir ninguém. Outra coisa que a Sônia conseguiu foi chamar umas pessoas importantes, que viriam ver no quarto dia, que era no fim de um feriado também.
Em São Paulo tem o Dia da Consciência Negra no dia 20 de novembro, que caiu numa quinta, e a geral emendou. Foi uma puta correria pra fazer divulgação e eu já ia ficando puto, numa de “porra, que tipo de amigos eu tenho?”. Ninguém ia ver. Mandei convite pra todo mundo via e-mail, via orkut, via SMS. Uma amiga, a Andréa, me respondeu um desses e-mails dizendo que não ia ver porque estava em cartaz no mesmo dia e horário e que ela também estava tendo problema de público.
A impressão que me dava era a seguinte: que eu podia mandar um e-mail dizendo “vai tomar no cu” pra todos os meus contatos e o resultado seria o seguinte: 75% responderiam e uns 20%, efetivamente, dariam a bunda sem mais delongas. Só que, se eu mandasse um e-mail dizendo “vem me ver no teatro?”, só os grilos responderiam. Mas eu sei o que eles estão pensando. Eles estão pensando “que porra! teatro? não tem como filmar e botar no youtube?”.
Avisei.
Avisei todo mundo.
No último dia, eu ia deixar um cartaz na bilheteria, escrito “MORRÃO” pro bilheteiro mostrar pra qualquer amigo meu que ficasse pra fora. Minha irmã tinha dito que ia no último dia. Meus pais também. O pessoal da Band dizia que não nesse, mas no outro, sem falta, eles iriam.
Nesse quarto dia, o Edu, que era professor de música quando eu dava aula de teatro no Colégio São José e apareceu pra ver. Quando fiz Júlio César, ele foi, não gostou e me contou tim-tim por tim-tim o que ele não tinha gostado. Mas ele gostou de “Estilhaços” e se divertiu bastante. Pelo visto, as pessoas importantes que a Sônia trouxe também gostaram. Porque foi isso que eles me disseram quando apertaram minhas mãos ao fim da peça.
E era o antepenúltimo e o pessoal da Band não foi. Foi o Gui com uma menina que eu espero de verdade que seja a namorada dele, porque ele é o cara que mais precisa de uma namorada que eu conheço. E foi também o Octávio, com a namorada dele, que eu já conhecia e foi ótimo tê-los ali.
Nesse dia, teve uma coisa que me ajudou muito. Eu tenho um sax de bambu, que o Titi, um daqueles músicos que tocam na República, vendeu pra mim. A Ju diz que é o berrante do Terremoto Torquemada. Eu tava entrando com ele na cena do jogo, que terminava com uma briga entre a Stella e o Stanley e eu não sabia o que fazer com ele, no meio daquilo tudo. E a gente sabia que o som dele ficava lindo na sala debaixo do Capobianco, mas até aquele dia, eu não tinha arrumado uma brecha em que eu pudesse tocar aquilo. Nesse dia, eu subi pra cena do balcão – porque, sim, nós temos uma cena do balcão em “Estilhaços” – com o sax metido na capa de chuva e, antes de cantar “Livro Aberto” – música inédita de Hélio Matheus cedida especialmente para o espetáculo – fiz uma frasezinha daquelas bem toscas, mas que solicitam um clima em torno delas e, nesse clima, eu cantei e me senti bem à vontade cantando. Teria sido uma merda se a Déa não tivesse sido muito ligeira. O sax caiu da minha roupa e ela foi lá, pegou e colocou num lugar onde, assim que eu desse falta, bateria os olhos. E foi o que aconteceu.
No penúltimo dia, o pessoal da Band foi. Foi a Glaucinha com a Elis e a Mari com o Felipe. Foram também a Lubi e o Lucas. Foi um dia em que a gente teve que atrasar o espetáculo porque metade do público se perdeu e chegou atrasado. Também foi meu pior dia. No sábado, tinha passado mal por causa de alguma coisa que comi (acho que foi uma trufa de amarula), vomitei, e tomei um dramin.
Capotei.
Dormi até a hora do ensaio no dia seguinte. Cheguei no teatro, deitei no chão e dormi mais ainda e, em cena, era uma coisa inacreditável o tento que eu me sentia lerdo. Me senti o próprio Philip Marlowe, dopado em “Sono Eterno”, do Raymond Chandler. Na cena em que Mitch e Blanche brigam, me deu soluço. No fim, me arrastei pra casa, com a mochila nas costas e – adivinha? – dormi outra vez.
Eu disse que esse dia foi o pior, mas não foi. O segundo foi o pior. Aconteceu o seguinte: um dia antes, a Rose e eu saímos e eu não parava de imitar o Sìlvio Santos. O Carioca já tinha me avisado: imitar o Sílvio é viciante. No dia do espetáculo, eu acordei imitando o Sílvio Santos e, durante a peça, a cada fala, eu tinha que fazer um esforço enorme pra não fazer “ôe”, botar um “m” no final das palavras, ou usar alguma daquelas irresistíveis inflexões que ele usa. Isso foi foda e, de lá pra cá, eu me proibi de imitar o Sílvio Santos.
Antes do último dia, teve amigo secreto da Band, na casa da Rosana. Ganhei dois livros maravilhosos da Nat Barreti. “Caminho de Los Angeles” do Fante, com Bandini respondendo por cada “eu” do autor, e o incomensurável “Folhas da Relva”, do Walt Whitman. Na sexta, todo mundo atrasou pro trabalho e quem foi pro samba depois da festa voltou com histórias maravilhosas. Era um grupo de amigos maravilhoso pra se trabalhar e eu me sentia feliz de estar com eles.
No último dia, foi ótimo. A casa tava cheia. Minha irmã foi com o Gui. ´Meu irmão também, a Andréa, a Thais. Até o Pepe foi. Achou chato pra caralho, mas foi. E, quando a gente foi jantar, ele não queria me deixar sentar à mesa porque eu estava sujo. Perguntou se eu queria dinheiro. Perguntei se ele trocava uma de cinqüenta pra mim. “Em moedinha de dez?”, ele perguntou.
Voltei pra casa logo cantando, desci a ladeira assobiando e até que dormi cedo. No dia seguinte, a gente ia ter reunião geral. As 10h30, no camarim M.
“M de morte”, eu pensei.
Antes das onze da manhã desta segunda feira, dia 15 de dezembro de 2008, estávamos todos demitidos.
4 comentários:
gostei.
Novembro foi um mês interminável aqui também, mas tomou consciência e resolveu acabar.
Você não sabe a reação que provoca com esses posts. A forma como você conta tudo, me faz oscilar entre risadas, franzidas de cenho, sorrisos leves.
"A gente busca sempre aquela faísca de glória que ilumina a vida toda."
e eu amei DEMAIS dessa frase. ela vai ficar martelando aqui por um bom tempo. Porque é tão verdadeira e só você mesmo pra explicar aquela expectativa que a gente cria dentro de si e até agora eu não sabia definir muito bem.
um beijo e já falei demais.
quem vive intensamente, sofre intensamente. é a vida.
Viver intensamente é - também? - sofrer intesamente, baby.
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