13.8.08

Saiba como é capotar com o carro e sobreviver pra contar a história.





Meia noite e trinta e dois.
O display do meu toca-fitas está meio apagado.
Ainda dá pra ver alguma coisa, principalmente no escuro da noite.
Deixei meu relógio em cima da escrivaninha.
"Tem bateria no meu celular?", é a pergunta que passa pela minha cabeça, sendo instantaneamente respondida com aquele descaso reservado somente às perguntas mais cretinas.
Minha bunda desgrudou do assento do carro, mas o cinto de segurança impede que minha cabeça bata no teto pelo lado de dentro.
Estou de ponta cabeça e fico pensando se essas faíscas que saem do teto que se arrasta pelo asfalto não poderiam causar um incêndio.
Penso em pessoas.
Uma ou duas pessoas.
É muito rápido.
As imagens vêm, causam uma sensação forte e vão.
Parece uma despedida das mais tenebrosas.
Tenho a impressão que meu corpo sacou que eu estou por um fio.
Uma pessoa.
Uma sensação.
É como se, naquele momento, algumas das pessoas mais queridas e mais importantes na sua vida viessem te dar um beijo de despedida.
Parecem flores colocadas por entes apressados num túmulo que ainda não foi cavado, para um defunto que ainda se mexe.
Eu.
No caso, eu.
Eu sou o defunto que se mexe.
Acho que o fato de eu ter ficado pendurado no cinto de segurança fez toda a diferença. Assim, meu corpo não bateu em lugar nenhum. Ficou suspenso, flutuando, seguro e salvo, em maio ao caos.
Penso nos vinte e tantos quilos que perdi nos últimos anos, do fim do meu último namoro pra cá.
Rezo para não bater em nada mais.
Na verdade, eu só rezo. Para quem e pedindo o quê não está muito definido.
Quando o carro pára de arrastar no chão, ouço um sibilo que não entendo bem. Não é hora de entender nada. É hora de evacuar a área, soldados.
Desligo a chave que estava no contato e solto o cinto. Abaixo a cabeça para bater com as costas no teto. Os cacos de vidro estão em toda parte, inclusive nas minhas costas. Eles grudam na blusa, mas não chegam na pele. Teriam que atravessar três camadas de tecido pano para chegar no tecido epitelial.
Será que vai explodir?
Vou engatinhando pelo teto e saio pela janela do passageiro. Ao colocar a mão no asfalto, lembro que essa janela não estava aberta. Está estilhaçada.
Ouço passos em corrida e, ao mesmo tempo, descubro que aquele sibilar é do pneu, que furou e gira sobre a minha cabeça.
Eu estou levantando e apalpando meus ossos quando as pessoas chegam, perguntando se tinha outra pessoa no carro.
Só eu.
Estou inteiro, respondo.
Cortei minha mão engatinhando sobre o vidro. Só senti agora porque a gasolina nas mangas da minha camisa faz o machucado doer mais do que o normal.
Apalpo partes do meu corpo para ver se encontro sangue.
Não... Não há sangue.
Só nos meus pulsos mesmo.
Os ferimentos, porém, são pequenos e vão parar de sangrar logo.
Não preciso me preocupar com eles.
O resto do meu sangue permanece - ainda que gelado - dentro do meu corpo.
Eu estou vivo.
VIVO.
Lembro da história que o Éverson me contou, sobre um cara que sofre um acidente feio, mas consegue escapar. Como eu escapei. Intacto.
Ele fica sentado no meio fio enquanto os curiosos vão se acumulando perto do carro. Logo, todos vão dando seu parecer. "Ele morreu", "Sim, morto", "É... Não dá pra escapar de um troço desses", "Morreu", "Morto"...
Assustado e confuso, ele vai até o carro pra ver se seu cadáver não estava lá e ele, o homem ciente e sentado no meio fio, não era um espírito. Quando percebe que não, que o homem ciente e sentado no meio fio ainda é um homem de carne e osso sim, o sujeito começa a berrar: "EU TÔ VIVO!!!". Não era, na história que o Év costumava contar, aquele berro de quem realmente constata que está vivo e que isso é bom. Era uma coisa meio de desforra, meio: "Vocês estão falando merda! Eu estou vivo, seus putos... VIVO!!".
Cogitei dar esse tipo de vexame, confesso. Em um certo momento, olhei para cima e murmurei algo bem parecido, agradecendo, mas foi só um sussurro.
Quando o resgate chega, a para-médica olha para mim com um olhar examinador, como se quisesse ter a certeza de que, de repente, eu não ia destrambelhar, ter um ataque histérico, desmaiar ou admitir que não era eu que estava guiando o carro e sim uma boneca inflável.
Ao invés disso, permaneço calmo.
Calmo como jamais imaginei ser capaz de estar.
O carro destruído, esperando o veredicto de perda total, dizia isso para mim: "calma". Aquele pneu rasgado, o cheiro de gasolina em toda parte, as marcas na lataria que se arrastou no asfalto, aquilo tudo... Tudo parece me dizer "calma, filho".
Fico parado na rua, perto do carro. Minhas fitas estão jogadas por todos os cantos. Antes que o resgate chegasse, liguei pro meu pai. Ele está vindo pra cá e, quando chegar, que me veja antes de ver o carro.
Os estragos no carro podem fazer com que ele duvide que eu estou bem como estou. Por isso, ele tem que me ver antes.
Tento salvar o que posso. Alguém me diz para desligar o rádio e tirar a frente dele. Não lembro que música tocava quando voei pelos ares. Estou obcecado em me lembrar isso.
Roupas no porta-malas, minha mochila, minha carteira. Tudo está salvo.
Puta merda! Tinha colocado 50 reais de gasolina antes do acidente!
Merda!
Onde estão as fitas com as gravações na casa da Calu?
E as fitas dos Mitocôndrias?
Depois penso nisso...
Essa é uma dor que, se for pra sentir, não quero sentir agora.
O álbum de fotos foi salvo.
Quando eu o tiro do porta-malas, já me certifico de que a foto que tirei com o Bowie continua lá. A foto do Vlad olha pra mim. Ele está sentado na privada, lendo jornal. Fui em quem clicou. Pensei nele no meio do acidente. Será que ele sabe?
E o outro carro? O carro que bateu em mim? Cadê ele?
O pessoal do resgate diz que o motorista está bêbado. E se machucou.
Não quero ver nada.
Ele podia ter me matado e está ferido.
Talvez seja grave.
O resgate diz que não.
Ele vai ficar bem.
Não quero ver o que aconteceu com ele e não quero ver o porquê disso tudo ter acontecido. Só quero que o médico registre oficialmente que ele está bêbado.
Um velhinho que estava no carro que bateu em mim vem falar comigo.
Ele repete que eu devo agradecer por estar vivo.
Tá... Tá.... Tá...
Estou preocupado com um dos caras que correu pra me socorrer.
O Del Rey que bateu em mim ainda bateu no carro dele.
Duvido que alguém pague.
Eu tenho seguro.
Repito isso o tempo todo porque todo mundo já veio me perguntar.
Sugerem que eu assuma a culpa pelo acidente porque, assim, a seguradora paga tudo. E o bebum só precisa pagar minha franquia.
Mas quem garante que ele vai pagar minha franquia mesmo?
Mais que isso... Ele se machucou!
Se eu assumo uma culpa que não é minha, a seguradora paga todos os prejuízos - ótimo - mas, antes disso, antes que eu possa ditar o número da placa do carro, sou processado por lesões corporais.
Se ele não tivesse se machucado, talvez eu assumisse só para pagar os prejuízos do rapaz.
Mas não... Eu não posso.
Mesmo que eu queira, não vou conseguir livrar o rapaz do prejuízo.
O motorista do Del Rey está bêbado, está machucado e já foi para o hospital.
Quando a polícia chega, descobre que não é só isso. Ele também não tem os documentos do carro, não tem carta de motorista. Só tem álcool. Meu pai chegou e eu já pedi pra ele ir ao hospital, tentar arrumar um laudo que comprove que o bebum está bêbado.
Os bombeiros também vieram para a festa.
Espero que este conselho nunca seja útil, mas quando os bombeiros vierem conversar com você, não coce a cabeça.
Nem que esse seja seu cacoete mais incontrolável.
Aconteça o que acontecer, não coce a cabeça.
Eu fiz isso e eles ficaram apalpando meu crânio por 15 minutos.
Pela primeira vez na minha vida, entendi como se sentem aqueles mamões que ficam nas quitandas, nos supermercados, sendo apalpados e verificados minuciosamente por aquelas experts em maturidade de mamão, as chamadas donas de casa.
Eles apalpam minha cabeça - três bombeiros de cada vez - com uma fé tão incrível, que, mesmo depois que eles param, eu continuo pra ver se realmente eu não estava mentindo quando disse que tudo estava bem.
Não tem nada de errado com a minha cabeça. Tirando uns cacos de vidro que ficaram emaranhados no cabelo, tudo vai bem. Sem sangue, sem galos, sem machucados e sem dores.
O velhinho continua pedindo para que eu agradeça a Deus por estar vivo.
Com um sorriso bem flácido, digo a ele que já agradeci e que ele também deveria agradecer por eu estar vivo.
Os policiais estão por toda parte. Fico repetindo a história para cada um deles. O pessoal que estava na oficina, de onde o carro saiu para bater em mim, confirma: o sujeito estava bêbado como um gambá.
Dizem que ele subiu a avenida na contramão porque viu o aglomerado de pessoas que esperavam um carro ficar pronto e acho que era um boteco.
Dizem também que, quando ele sacou que não era um boteco e sim uma oficina, tentou voltar para o carro e, no percurso, caiu de bunda no chão, mal conseguindo levantar.
Tentou sair de ré, quase bateu em um carro e, não conseguindo, saiu de frente. É aí que eu entro na história.
Escuto tudo muito claramente. Tudo faz completo sentido. Uma dúzia de pessoas fala ao mesmo tempo e eu ouço todas. Não que eu seja capaz de repetir o que elas dizem, mas consigo saber o que todas estão falando.
Ainda tem vidro no meio dos meus cabelos.
Se os bombeiros forem embora logo, vou tentar tirar alguns pedacinhos antes que eles escorreguem e caiam no meu olho. Não quero mais ninguém apalpando meu crânio. Não hoje. Não um bombeiro. Não aqui e não agora.
Depois que meu pai volta do hospital, sou conduzido à delegacia (85ª DP), enquanto meu pai fica, com mais uma viatura, esperando o guincho chegar.
No caminho, começo a tremer.
É frio.
Só frio.
Quero dormir logo.
Acho que não vou trabalhar amanhã.
Fico pensando em coisa inúteis.
E penso naquelas pessoas que passaram pela minha cabeça enquanto eu capotava...
Como é que eu vou contar isso pra elas?
É...
Acho que é assim que eu vou contar.
Bem assim...
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1 comentários:

Sentimentalidades-Todas disse...

sem dúvida, o que mais me deixou temerosa foi não poder conçar a cabeça na frente de bombeiros....

E seu acidente ficou muito bonito e interessante.....no "papel"