Um Rio Que Peidou Em Minha Vida
Se um de nós fosse cego, o título desta coluna teria que ser "Perfume De Rio" ("Scent Of River, BRA, 1994), mas a gente via o rio, sabia que ele estava lá, mas apenas um de nós conseguia sentir o cheiro que vinha dele.
Foi nos primeiros meses do meu segundo ano na faculdade.
No primeiro ano, a gente já havia estabelecido a malfadada reputação da linha Jardim Peri Peri/Metrô Ana Rosa e, agora, no segundo, era só uma questão de manter a classe.
Podia ser segunda-feira, podia ser o dia que fosse e aquele ônibus era sempre de um bom humor histriônico.
Era a única linha que ia direto pra faculdade e o ônibus que saía da estação Ana Rosa às 7:20 da manhã já saía de lá cheio.
No meio do caminho ainda pegava um monte de gente e, conforme a gente ia se conhecendo, já ia se chamando pelo nome. E, conforme, a gente ia se chamando pelo nome, a gente fazia tabela pra saber quem subia em que ponto e ficava esperando pra dizer, todo mundo, em coro:
"Bom dia, fulano de tal".
E o dia do fulano de tal começava assim, o que não é o jeito com que o dia de bastante gente começa.
No primeiro ano, tinha o Léo, que só subia no primeiro ponto da Paulista e me ajudava bastante nessa árdua missão de ser retardado.
No segundo ano, tinha o Ricardinho que já saía do primeiro ponto sendo retardado junto comigo.
Era o começo de uma era e, como em todo começo de uma era, a gente não sabia.
O Ricardinho tinha um leve problema olfativo.
Leve o caralho.
Ele praticamente não sentia cheiro, nem perfume, nem fedor.
Sentir, ele até sentia, mas era bem pouco.
Se um dia ele aparecesse com um gambá no colo dizendo "olha que cachorrinho fofo", eu só ia estranhar porque ele se mija de medo de cachorro.
Pelo cheiro, ele não ia perceber nem se o gambá fosse morar dentro de uma das suas narinas.
O jeito como eu percebi essa inaptidão de faro do Ricardo não deixou margem para dúvidas.
O ônibus passava por cima da ponte da Eusébio Matoso e, por baixo, passava o fétido e morto rio Pinheiros.
Naquela época, em específico, o cheiro por lá era insuportável como ainda é hoje, só que, naquela época, as pessoas botavam a culpa no meu (m)all-star azul.
O Ricardo não.
Ele tinha outros planos.
"Fê", ele chamou.
"Oi", eu respondi.
"Cê peidô?", ele perguntou.
"Não, Ri... É o cheiro do rio", respondi.
E ele: "Ah, tá...".
Ficou por isso mesmo.
Eu achava que era piada dele e não dava muita trela porque - você sabe - se você dá muita trela quando falam que você peidou, no dia seguinte, você virou o peidorrento do buzão e não há cristo que tire essa cruz dos seus ombros.
Depois do carnaval, vem ele de novo:
"Fê", chamou.
"Oi", respondi.
"Cê peidô?", perguntou.
"Não, Ri... O rio tem esse cheiro", respondi, sério.
E ele: "Ah, tá...".
Depois das férias de julho, um mês sem se falar direito, a gente vai botando o papo em dia.
Quando a gente passou sobre a ponte, estava falando alguma coisa sobre o Ozzy ser o Dom Lázaro do rock ("enfér-mêra, eu quero mé-lãoum... eu pré-firo mé-lãoum") e que a gente ia fundar um fã-clube dele chamado Sociedade Pestalozzy Para Retardados Que Nem Nós quando ele interrompeu tudo.
"Fê", ele chamou.
"Oi", respondi.
"Cê peidô?", ele perguntou.
"Não, Ri... O rio tem esse cheiro", eu respondi.
E ele: "Ah, tá...".
Outro dia, ele me aparece com um violão.
Um violão.
Dentro DAQUELE buzão.
Hoje a idéia me parece absurda, principalmente quando lembro da velhinha - coitada - que levou um K-Bong no meio do caminho.
Se você é novo e não lembra dos desenhos do Pepe Legal, eu explico: K-Bong era um jeito de fazer Pedala Robinho nos outros. ... só que usando um violão.
Porém, naquele dia, a idéia de trazer um violão em um ônibus em que mal cabia gente, pareceu uma boa idéia.
Eu ia atravessando a letra de "Ziggy Stardust", o ônibus ia atravessando a ponte da Eusébio Matoso e o Ricardo fez o que o Ricardo faz:
"Fê"...
"Fala", respondi.
"Cê peidô?", perguntou ele.
"Não, porra! É a merda do rio, caralho. Vai se foder. Porra. Dorme aí".
Você sabe: eu fui educado no Itamaraty.
Bar & bilhar Itamaraty, Cambuci, São Paulo.
E assim foi.
Parece uma eternidade, mas foi um número que a gente repetiu só por um ano e meio. Era isso.
Era isso e tentar fazer todo mundo cantar a musiquinha dos Smurfs dentro do ônibus.
E dar "bom dia, tubarão" pra uma escultura que tem (tinha?) no meio da Rebouças, que parecia uma barbatana de um tubarão submerso no concreto.
E ficar pedindo pro Édson, o cobrador, e pro Boiadeiro, o motorista, pra eles deixarem o Ricardo e eu brincarmos de cobrador e motorista - respectivamente - num dia em que eles estivessem cansados do tédio da vida.
Esses dias, a gente passou por lá outra vez.
Depois de mais de uma década, lá estávamos nós dois, rumando morosamente para a ponte da Eusébio Matoso.
Mesmo que as janelas estivessem bem fechadas, o fedor já começava a entrar.
E mesmo que não entrasse, a gente sabia que ele estava lá fora.
Eu quase comecei a pensar que, depois de todos esse anos naquela indústria vital, aquilo nunca mais aconteceria quando ele disse:
"Fê...".
Eu ainda tentei fingir que estava prestando atenção em alguma coisa que o rádio poderia porventura dizer, mas em pleno horário da Voz do Brasil, isso não cola.
É a mesma coisa que pedir pra tua mulher tirar da novela pra ver se tem alguma coisa legal passando na TV Senado.
"Cê peidô?"
É assim, então. Você estuda, você faz faculdade, você passa dias e dias pensando em maneiras de ser sensato e tentar achar um sentido, por menor que seja, na vida e, quando tudo parece estar bem, rola uma dessas e você percebe que o sentido que um dia houve foi você quem inventou pra tentar justificar seu sorriso sem parecer insano.
"Peidei sim, Ri. Peidei muito e peidei forte. Acho que eu sou o campeão mundial de todos os peidos na categoria peido-pesado. Queimou até os bigodes e, pra falar a real, acho que o banco do teu carro já era", eu disse.
Ele olhou pra mim.
Neutro.
Olhou pra frente.
Neutro.
Olhou pro rádio e desligou, acabando com a palhaçada da Voz do Brasil, e, num tom quase preocupado, disse pra mim:
"Caralho, Fê... Você precisa ver isso direito, cara. Eu jurava que era o cheiro do rio".
1 comentários:
Fê, vc peidou?
hehehehe
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