GIRL TALK - FEED THE ANIMALS
Eu juro que não queria estar escrevendo, mas é que não tem escolha. A impressão que me dá é que, se eu não começar a escrever imediatamente, eu vou perder o bonde da maior viagem da minha vida e, se eu fizer isso, é capaz de me dar um aneurisma cerebral e eu cair duro aqui onde eu estou.
A única coisa que vai me restar como lembrança e chave para esse reino inescrutável que é o último pensamento daquele que recém morreu, deixo apenas como pista uma foto. A última foto. Aquela que eu tirei quase na esquina da augusta com a caio prado, de um daqueles canteiros pra se plantar uma árvore, mas sem nenhuma árvore ali plantada. Tá escrito lá, no quadrado, “PAZ” e “FÊ”. As duas nunca se encontram, nem a paz e nem o fê. Vai, foda-se que podia ser “FÉ” e não “FÊ”, mas o que eu tô falando aqui tem a ver com auto-afirmação do indivíduo ou, em outras palavras: FÉ. Só calhou de eu ser FÊ e, justamente por isso, encontrar ali, a chave da minha vida, que é uma coisa que eu jamais ia poder explicar. Por isso, eu nem tento.
Só que o que acontece é que o caminho é tão nítido e tão cheio de coisa, que eu acabei PRECISANDO contar isso.
caralho.
Que porra que é essa do disco do Girl Talk?
nada contra.
pelo contrário: nunca vi nada tão legal quanto “Feed The Animals”, do Girl Talk.
Baixei pelo site deles, porque eles deixam baixar pela quantia que for. No valor, sem drama, eu preenchi com um monte de zeros, pra dizer que não ia pagar nada. O site me perguntou por que eu tinha escolhido pagar nada. Respondi, sem drama: “can’t afford it”. E é o que realmente é.
Botei o disco pra dentro do mp3player e subi pra bater o ponto. Encontrei o Léo Muller, o cara que diz “repita” no Jornal da Manhã da Pan AM. Não lembro de picas que ele me disse porque eu tava na pilha de ouvir o disco certo. E havia um jeito certo: ouvir andando.
Só tinha ouvido uma música e tava babando pra ouvir o resto e tive a intuição de que aquele seria um bom disco pra ir ouvindo por toda a avenida paulista e, principalmente, muito principalmente, descendo a rua augusta na hora que o povo que sai do trabalho vai se encontrando por lá. “Play Your Part (Part.01)” me dizia pra eu andar.
Se eu pudesse dar um nome pra isso, eu daria o nome de wandering music. algo assim. é da natureza humana dar nome pras coisas. É música que tem um ritmo marcado, que pode acompanhar seus passos, que pode acompanhar suas ações, que pode te dar um ritmo, porque é uma coisa que eu lembro de já ter ouvido numa música do johnny cash. vamos lá, entre no ritmo, assim que se sentir triste. o fato é que a gente nem sempre tá feliz. pra dizer a verdade, são raras as vezes que a gente tá realmente feliz. o que o girl talk faz é te hipnotizar num ritmo, que se você tiver a destreza de acompanhar com o corpo, vai ser uma viagem do caralho. por isso, eu achei que, de cara, era um disco pra se ouvir andando, mas agora, eu tô ouvindo em casa, enquanto eu escrevo e minhas mãos batem nas teclas com um ritmo que dá gosto de escrever. Por isso, ao mesmo tempo, acho que também é uma variação maravilhosa daquele tipo de música que se batia nos tambores dos navios de escravos, que eram obrigados a remar pro navio navegar – ora veja! – e eu ficava me perguntando “e se o capitão resolve fazer esqui-aquático?" E aí, se você escuta isso trabalhando, é um equivalente mitológico das canções de lavadeiras, marcando o ritmo, escorrendo águas e mágoas.
Você tem na mesma música (não estou enumerando) uma letra legal, como uma frase de efeito, com o refrão de “We’re Not Gonna Take” do Twisted Sister, uma tagarelagem semi-bêbada sobre não pagar porra nenhuma colada com “Nothing Compares To U”, naquela parte que a Skinhead O’ Connor faz aquela parada legal no refrão e umas biátches cantando corinhos safados.
Samples, simples samples.
Colocados magistralmente como uma daquelas fileiras de dominós que sempre apareciam no Fantástico da época que eu assistia fantástico e isso deixava a gente bobo. Nunca entendi porque isso acontecia. E ainda não entendo agora, enquanto ouço o disco. Mas tenho a impressão que é o mesmo fascínio. Só que tem mais uma coisa: tem um PUTA BOM GOSTO por trás disso.
Dá vontade de ficar citando todas as colagens.
É fácil gostar disso.
É bom de ouvir isso.
A gente é capaz de ficar devaneando por horas ouvindo esse disco e eu posso dizer seguramente que esse é o primeiro disco em muitos e muitos tempos que, na hora que acaba, eu fico ansioso e faço o que for pra poder ouvir tudo, de novo, da cappo.
Tem lixo no meio de tudo, mas até o lixo é legal, porque é um lixo que estava no mundo anos atrás e se você esteve vivo nesse mesmo mundo em que esse lixo esteve no ar, você vai se lembrar dele e pode até se lembrar do quanto a sua vida era feliz naquela época, como no baile final de “Footloose”, depois que o bandido apanhou até a inconsciência e todo mundo resolve dançar.
Tem coisas incríveis feitas com trechos incríveis de músicas incríveis. E você fica achando tudo histérico, acelera o passo, aí a música breca e te põe num compasso de espera e introduz mais uma brincadeira. Chama uma música que você conhece, não sabe de onde, mas conhece, assim que você vai se lembrando que música é, ela muda e, se voltar, vai voltar mais pra frente. Tem de tudo nisso aí, riff do metallica, batidinha do tone-loc, umas catarses malucas de histórias que você já está cansado de ouvir. É do caralho: parece que você está dentro de um sonho de uma outra pessoa. No meio de bateristas famosos, que tocam e desaparecem, antes que você possa se lembrar de qual famoso ele é. Tem o Michael Jackson falando de mulher e sendo convincente, naquela época em que ele ainda não sabia pra que elas serviam – fábrica de crianças e encostando no finalzinho de “Bohemian Rhapsody”, naquele pedaço que a gente realmente fica triste porque o freddie is dead, baby, freddie is dead.
é a festa do mash-up que nunca termina.
a festa de uma pessoa só que acontece na sua cabeça.
você ouve girl talk e acha do caralho, mas o que você acha do caralho é o que você tem dentro da sua cabeça, que é o que o girl talk magistralmente consegue tirar de lá, nas catacumbas de sua memória, e te apresentar novamente: com tudo que foi e com mais aquilo que você acha que foi.
As citações de soul music pesada arragaçam. Wilson Pickett é foda. Te dá vontade de dançar pequeninho, espremido no metrô, te dá vontade de fazer movimentos diferentes com os braços. É uma dança. Andar, quando você tem um mp3player, mesmo dos mais vagabundos como o meu, e consegue encher de música boa é como beijar o céu.
O que também é legal do tanto de citação e sample que o girl talk faz é que, se você tem uma coleção de discos razoável, você vai acabar ficando com vontade de ouvir alguma coisa esquecida.
Ainda acho que a forma de arte suprema na música, pra quem não faz música. Pra nós, os que consumimos música por prazer, é aquela velha fita cassete, onde cabe um set, por mais tosco que ele seja. Veja bem. Não é a fita que você grava pros outros. É a fita que você grava pra VOCÊ.
O que o disco do Girl Talk faz é isso. Ela é a fita que todos nós gostaríamos de gravar pra nós mesmos e nunca tivemos capacidade de fazê-lo.
“Feed The Animals” é fast-food pra quem tem larica de música e fica pulando de uma pra outra. Eu, animal que gosta de fast-food, me senti perfeitamente alimentado.
De repente, quando eu fui ver, tava cantando “You Got It” do Roy Orbinson, no meio da rua.
Vê se pode...
Isso me lembra um poema que li hoje de manhã, cagando. Tennessee Williams escreveu quando descobriu que sua dor não era nada além de um cisco no olho do cu do mundo.
“Estranhos passam por mim nas ruas
em infinitas multidões: seus pés em marcha
soam aos meus ouvidos com uma uniformidade
que embota meus sentidos, acalma meus terrores;
ouço suas risadas e seus suspiros
olho dentro dos seus inumeráveis olhos:
então, imediatamente, minha dor ardente
esfria como cinza caída na neve”
A gente não vive sempre nesse desespero sorridente? Por que não, então, largar de lado o desespero e ficar só com o sorridente... Nem que só no caminho de volta pra casa?
1 comentários:
é tudo tão fantastico, tão bom, tão gostoso, são misturas que teoricamente vc jamais ousaria fazer em uma festa por exemplo, mas alo juntas, cada música parece ter nascido pra isso.... pra se juntar à outra...
=D fico feliz que tenha gostado
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