autobiografia destualizada
meu nome é fernando tucori,
meu nome do meio é prior
e uma vez eu fui no mosteiro de são bento
e eles chamavam um dos monges de prior:
fui ver se ele era parente meu.
não era.
era pior.
prior, no mosteiro é um cargo,
de onde imagino que alguém de minha família
fugiu de um mosteiro ou...
ai, ai...
ô-ôu.
de qualquer modo,
não quero saber.
se eu voltar pro mosteiro,
tento descobrir,
mas eu acho que já tive minha chance
e, uuuuuuh!,
ela passou, raspando no travessão
e foi pela linha de fundo em tiro de meta
pro meu goleiro bater.
sou um sujeito que dirige devagar.
sou um sujeito que anda devagar
porque gosta de vagar e de divagar.
uma vez me disseram que eu era um palhaço.
no mesmo dia,
outra pessoa me disse que eu era um herói.
eu não vejo diferença entre um e outro
e não concordo que seja nenhum.
outro dia, uma pessoa disse que eu sou um homem adulto.
eu sou um cara que não tem certeza disso,
nem daquilo,
mas as vezes eu paro e olho,
só pra saber se ainda sou aquilo
que achei que deveria ser um dia.
nem sempre sou,
mas as vezes reconheço o estranho no espelho.
na escola, eu sempre perdia as borrachas
e nunca deixava de lado o lápis.
na vida, existe sempre um plano “b”
e o “b” é de borracha,
mas acho que perdi a borracha
de novo.
quero dar trabalho pro meu biógrafo,
muito embora – e bem por isso -
eu saiba que ele sou eu.
já olhei a morte nos olhos
por duas vezes no mesmo ano.
em uma,
meus olhos estavam bem abertos
e depois bem fechados.
na outra, eles estavam bem fechados
e, depois, ficaram bem abertos.
pensando bem,
naquele mesmo ano,
talvez tenham sido três ou quatro.
já me arrastei de ponta cabeça no asfalto
em um carro que capotou
e se perdeu pra sempre.
vi dois arcos-íris pulando sela.
vi coelhos trepando na lua.
vi uma caminhão empinar na BR-116.
já despenquei com a queda d´água.
já me afoguei.
já fui salvo por uma criança.
já fui salvo por uma mulher que eu não conhecia.
já fui salvo por uma mulher que conhecia bem.
tenho hábito de procurar os perdidos sempre
e perder os achados as vezes.
ainda acho que o perdido sou eu
e que todos os outros são os achados.
eu enrolo pra não dizer e,
quando vou ver,
já disse
e ninguém percebeu.
sou um prestidigitador da minha própria história.
em toda minha história,
para cada cantador de blues
derramando sangue pela garganta,
há um palhaço dançando
sem música
pra chamar atenção.
eu preciso de atenção.
eu não resisto onde há tensão.
tenho meus limites racionais
e acho que não tenho nenhum limite irracional.
uma vez animal,
sempre animal.
odeio agressão,
detesto discutir
e saio da sala quando a coisa fica feia,
porque ela sempre fica mais feia se eu ficar.
há rumores a respeito dos meus humores.
o que eu digo é que
há sempre veneno na minha boca
e eu sempre preciso de um lugar longe de tudo
pra poder cuspir sem afetar ninguém.
adoro quebrar coisas
e isso inclui a mim mesmo.
sou meu maior inimigo desde sempre
e meu melhor amigo desde muito antes.
já tive companhia,
já fui companhia
e já estive sozinho.
depois que descobri que posso ser companhia de mim mesmo,
meus dias ficaram diferentes de todos os outros.
já chorei e já sorri o bastante
para saber que é preciso chorar
e que é preciso sorrir e que,
não bastando isso,
é preciso florir.
é preciso ir.
parado, eu morro.
é preciso subir o morro.
mas, as vezes é preciso parar
e plantar além do próximo morro.
nunca rejeito a idéia
de que o próximo morro nunca virá
e que, talvez, eu seja solicitado
a morrer para um lado
e viver eternamente do outro.
ao lado do seu lado que era meu.
tenho uma cicatriz na mão esquerda
que pra sempre me lembra
que quase perdi dois dedos
porque só queria ajudar.
acredito em “porque sim”
e “porque não”
e acho que um bocado de respeito e atenção
deixa tudo simples.
faço qualquer coisa pra não fazer nada.
não sei se existe alguém
que realmente me conheça
do lado de fora da própria cabeça.
se percebo que alguém está me entendendo errado,
o meu esforço em me explicar
é diretamente proporcional
ao esforço do outro em me entender.
não acredito no amor.
acredito no Amor.
adoro ler no cais da vila em ilhabela.
adoro tocar gaita sozinho
vendo o sol cair na represa,
mas sempre acho que estou estragando tudo.
não sei tocar instrumento nenhum
e tenho um teclado,
um baixo,
uma guitarra
e três gaitas
e sempre toco pra alguém que não esta lá.
eu me preocupo em olhar o caminho
e não sei nunca pra onde estou indo,
mas sempre descubro assim que chego.
pra mim, é muito fácil fazer
e muito difícil explicar.
talvez seja essa isso que tenha me levado a escrever:
é um jeito de me atormentar sozinho.
apesar de escrever feito um idiota sem noção
desde sei lá quando,
nunca escrevi a respeito de coisas que estavam acontecendo
enquanto elas estavam acontecendo
(se bem que as tentativas de fazer isso
nunca foram sérias, mas sempre foram hilárias.
de vez em quando baixa o “gravador em papel”
e eu calo a boca e fico só escrevendo frases
que ouço em minha volta)
um dia ainda consigo fazer trovões rimarem outra vez.
sou um bacalhau que bota cem milhões de ovos
pra ver três deles virarem peixes.
canto alto com o rádio do carro.
canto alto sem o rádio do carro.
como besteira,
falo besteira
e danço conforme a música,
sempre como se ninguém estivesse olhando,
ou não danço de jeito nenhum.
dançar de verdade,
só danço sozinho em casa.
faço coisas erradas
ciente de que elas são erradas,
mas, se eu não fizer,
outra pessoa vai fazer.
assumo erros dos outros,
que dirá dos meus.
já queimei pontes por não saber onde elas iam dar.
já construí pontes só pra passar o tempo.
já fiz amizades profundas com porteiros,
com bêbados de rua,
com motoristas de ônibus,
cobradores,
balconistas,
garçons,
chapeiros
e residentes de botecos.
dou nome pras pessoas antes de conhecê-las
e as vezes acerto.
tiro palavras da boca dos outros,
principalmente quando os outros são os mesmos.
falo palavrão o tempo todo
e acho que “filha da puta”
pode ser um bom substituto pra “eu amo você”.
posso passar um dia todo de pijama
esperando a janta.
e não jantar.
já deixei de comer coisas que adoro por não estar com vontade.
jogo conchas de volta no mar,
jogo peixes de volta na água
e tento botar passarinhos de volta no ninho.
xingo o mar que derrubou meu castelo de areia
e, ainda assim, faço outro.
adoro dar flores
e só ganhei, mesmo, uma única vez.
eu sou um macaco tentando perdoar deus.
eu sou a pessoa errada na hora errada
e no lugar errado.
sou um erro 404 em carne e osso.
sou o sorriso de um homem bomba parado no meio do louvre,
os dedos do pé de um jeca tatu sem botas.
sou o que você quiser que eu seja.
sou um perderdor,
porque você não me mata?
i'm the king of bongo.
a streetwalking maybe with a heart full of raw power.
já fiz chover pétalas vermelhas da sacada.
acho sementes na praia, no mato e na rua
e planto todas elas perto da represa
e fico puto porque elas não nascem.
durmo com caneta na mão,
durmo com livro na mão,
durmo com a cabeça no caderno
e acordo com listras de espiral na cara.
tenho mania de, dormindo, dar a mão
pra quem chegar perto de mim com a alma aberta.
guardo meu primeiro caderno de redação
junto com toda a história do meu primeiro amor,
com quem me encontrei mais tarde,
no carnaval de 1998 e achei engraçado.
tenho um tataravô negro,
um bisavô grego,
uma tataravó índia,
uma bisavó polonesa
judia
loira
e de olhos azuis
e sei que posso estar inventando isso tudo,
mas acredite nisso:
saí bem brasileiro.
acho adorável tudo que é imperfeito.
tenho uma banda imperfeita
chamada terremoto torquemada
e outra, perfeita, chamada travelling hellman’s band.
a primeira sempre ensaia e nunca aprende.
a segunda sabe tudo, nunca ensaia e só improvisa.
acho que a vida é improviso.
tenho uma alça firme e outra solta.
não sei porra nenhuma a respeito do que sou,
serei ou quero ser.
sei que vou.
vou sendo,
vou andando,
vou arrastando um fio de ontens atrás de mim
e tricotando um hoje imenso.
pro amanhã,
guardo apenas o que gruda na minha roupa
enquanto vou andando.
eu vou andando,
eu vou fernando...
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