14.5.08

2003 foi um ano bom!



Era coisa de dez horas da noite e eu estava lá com caramujos do tamanho de tartarugas lambuzando a grama do ponto de ônibus. Eram aqueles dias entre o Natal e o ano novo, em Ilhabela, mais pra perto do natal que pra perto do ano novo.
Eu tinha ido pra lá com “Don Juan”, de Moliére e tinha terminado na primeira sentada na rede. Havia, em quase todas as páginas, sangue fresco das minhas pernas mastigadas pelos borrachudos e eu tinha sede de mais – livros sim, borrachudos não. Com esse intuito, eu estava saindo das imediações da Praia do Curral pra ir até a Vila e comprar qualquer livro que eu pudesse achar interessante.
O ônibus passou depois de uma longa espera e eu fui do lado de um sujeito que só tinha um cotoco de dedo e fez questão de me contar toda a história de como foi que isso aconteceu, só que o ronco do motor, junto com barulho da suspensão do ônibus e aliado ao fato de que eu estava completamente chapado fez com que eu não entendesse absolutamente nada do que o sujeito me contava. Reagi apenas as expressões de seu rosto, com um ocasional soslaio desconfiado e um efusivo arregalar de olhos, sem jamais adquirir tom grave, que poderia ser mal-interpretado como pena.
O ônibus ancorou perto da balsa e praticamente todo mundo – gente simples e de bom coração – ia pra balsa. A turistada mesmo estava lá, perto da balsa, que é onde as pousadas são mais baratas e era com ela que eu iria pra vila.
Não era mais o ônibus xexelento.
Era uma van, com ar condicionado e tudo mais.
Uma menina linda, que tinha pulado do mesmo ônibus xexelento que eu. sobe no primeiro ponto e vem ficar bem perto de mim, porque eu fui um dos últimos a embarcar e estava muito perto da porta.
O legítimo produto local em todo seu esplendor genético.
Anos e anos curtindo ao sol e no magnetismo de uma ilha vulcânica podem fazer maravilhas com a compleição física do ser humano e, evidementemente, havia feito com ela. A suspensão da van era firme e os buracos eram poucos e aquilo dava um leve ondular à carne dela. Apenas dois botões seguravam aqueles seios que mal cabiam em si. Eu ficava vendo descaradamente pelo reflexo em uma das janelas e dava toda a impressão de que eu estava olhando pra fora.
Ela nem percebeu.
Gostaria que tivesse percebido, mas, quando a van parou na vila, ela desceu e foi subindo o morro rumo ao cemitério e nunca mais a vi.
Olhei em volta e tudo estava em seu lugar.
A vila ainda era agradável.
Ainda não se tornara aquela pasta de vômito e areia que viria a ser no ano novo.
Fui andando até a esquina da rua do meio e tinha uma feira hippie instalada naquilo que seria sua continuação para o lado do continente. Fui até lá dar uma olhada no artesanato, ver se havia alguma coisa que explicasse o universo, mas só encontrei um cara que se ofereceu pra, de graça, colocar um dente de jacaré no meu colar de contas de madeira.
A Camila tinha me dado aquele colar e a Camila já era.
Só ia precisar me procupar com ela de novo quando voltasse aos ensaios e isso ainda ia demorar. Foi assim que aquele colar perdeu a força dela e foi assim, também, que eu jamais tornei a usar aquele colar. O dente de jacaré me furava o peito quando eu rolava por cima dele à noite. Ele disse que era um símbolo de coragem e foi: transformei um presente de uma ex-namorada em uma coisa com que eu não queria mais dormir e isso meio que resumia minha situação.
Devia ter jogado o colar no mar no ano novo.
Devia mesmo.

Com aquele passo lento de quem tem a eternidade a seu favor, fui até a livraria e procurei um livro qualquer. Não tão qualquer assim, afinal, ele teria de ser minha companhia.
A coisa lá na casa não estava das mais fáceis.
O Rafael com a Gordinha dele não eram confiáveis em absoluto. O Rafael faria qualquer coisa que a Gordinha gritasse pra ele fazer e ela não gostava muito de mim porque, entre outros motivos, eu tinha dito que a inflamação no pé que ela havia pego por causa das picadas dos borrachudos, era uma “obra de Deus-Todo-Poderoso”.
Não foi exatamente o que eu disse que fez com que ela se zangasse, mas sim o fato de todo mundo – inclusive desconhecidos – terem rido. Ela achou que as pessoas estavam rido DELA e, como toda pessoa lipidicamente insegura, ela me jurou inimigo.
O Paxá também não estava em uma situação muito boa desde que jogou dentro de um caminhão de lixo a chave da porta de frente da casa onde a gente estava ficando.
Claro que ainda havia o João Paulo e a Vanessa e mais o Tony e a Paty. Eles ainda estavam por chegar e, para dizer a verdade, eu morria de medo que eles não viessem.
Porque, vindo ou não vindo, haveria uma cisão naquela casa. E, se eles não viessem, só seria pior, porque os dois iam encher só o MEU saco.
O Paxá estava acostumado com aquilo e conhecia gente o bastante na Ilha pra ficar à vontade.
Eu não.
Eu teria que me virar.
E foi aí que o telefone tocou.
Era o Rafael dizendo que não iria dar a carona que tinha dito que ia dar.
E agora era tarde, porque os ônibus já haviam encerrado o trabalho às duas da manhã.
Eu teria que arrumar um jeito de voltar pra casa, mas antes, eu precisava comprar um livro. Entre “Assassinato Em Poodle Springs” de Raymond Chandler e “1933 Foi Um Ano Ruim”, de John Fante, escolhi o segundo.
Ainda não conhecia Fante e isso decidiu.
Uma viagem é pra se conhecer pessoas novas e – por que não? – um novo autor.

Fui ler no cais, que seria uma espécie de continuacão da Rua do Meio - caso as pessoas resolvessem ir direto pra dentro do mar sacar dinheiro em um banco de areia.
Existem raros lugares mais agradáveis para se ler um livro que aquele.
A iluminação é boa, a paisagem é linda e você pode fumar, desde que tenha a decência de não jogar suas bitucas no mar. Pra isso, qualquer latinha de cerveja servia como um cinzeiro que duraria o quanto fosse preciso.
Um cara me pergunta que livro é aquele que eu estou lendo. Eu digo a ele que é a primeira vez que eu estou lendo alguma coisa do autor, mas que parecia ser bem legal porque já na primeira sentada cinquenta páginas tinham ido. Ele anotou o nome e voltou para junto da namorada.
Um outro rapaz, de calça jeans e camiseta da flanela, boné virado pra trás, veio me perguntar onde era o melhor lugar pra passar a virada de ano. Era o primeiro reveillon dele na Ilha. Senti um pouco de inveja.
Disse a ele que fosse ao curral.
Dois garotos sentan-se à minha frente e ficam discutindo alguma daquelas coisas que só bons amigos discutem e, justamente por serem bons amigos, jamais chegam a um acordo. Um deles era bonito por natureza e confiante. O outro, magro, com perfil anguloso era falante, persuasivo. Parecia que não havia pensamento que passasse pela sua cabeça que não fosse imediatamente transformado em palavras. O primeiro queria pescar lula ali e o segundo achava que era melhor esperar mais um pouco porque ainda não era a hora certa.
A gente conversou sobre coisas que moleques conversam – quem joga bem futebol, que tipo de mulher é bonita e por que é bonita, o que fazer quando não tem nada pra fazer e onde foi que você se fodeu – e eu fiquei com a imagem daquele segundo moleque registrada na minha cabeça.
Daí pra frente, quando lia sobre Dominic Molise, era a figura dele que me passava pela cabeça. Eles saem e vão buscar o barco, porque estava chegando a hora de pescar lulas. Disse a eles que, se eles voltassem, eu ia querer entrar no barco.
O moleque do boné, que havia saído no meio da nossa conversa dizendo que iria buscar cerveja, realmente voltou com duas latinhas.
A gente abriu as duas e brindou ao ano de 2004, que, naquele momento, era só um sonho.

Foi quando aquele bando de mulher surgiu não sei da onde, fazendo o carnaval de um bando de pássaros no jardim, naquela hora mais linda do dia.
Eram nada menos que oito meninas e apenas um cara. E elas estavam falando sobre teatro. O moleque do boné, Nicolas, olhou pra mim achando graça quando eu disse “vamos lá falar com elas”, mas não me achou mais.
Eu já estava lá falando com elas.
Entrei com um obtuso “então, vocês tão falando de teatro?”, mas elas eram legais demais pra tomar isso como uma intrusão e, sem constrangimento algum, me incluíram na conversa.
Incluíram até o pobre Nicolas que, roxo de vergonha, era incapaz de entender aquele papo. Ele era um atleta. Jogava basquete. Federado. Tirando aquele final de anos 80 no colégio Anglo Latino - em que o melhor pivô do time fazia Ricardo Reis, numa peça sobre Fernando Pessoa, em que eu fazia Álvaro de Campos e era o pior batedor de meio do time de vôlei - atletas não faziam teatro.
A conversa ficou cada vez melhor e os meninos chegaram com o barco no mesmo momento em que algumas das meninas saíam para procurar alguma coisa pra se fazer.
A Luana, a mais velha e mais legal de todas as meninas, quis ir junto comigo no barco.
Ela sabia se virar. Tinha sido criada na Ilha e parece que conhecia pessoas da família tanto de um quanto de outro dos moleques do barco.
A gente ficou lá, falando alto e conversando com o pessoal que tinha ficado no cais, normalmente, enquanto um dos meninos puxava lulas sem parar para dentro do barco.
De cima do cais, o nosso Dominic Molise olhava para a água com ar examinador e aparecia com lugares precisos para se jogar a linha. Todos eles exatos. Como ele sabia?
O resto da turma das meninas voltou para o cais, dizendo que ia haver um sarau na casa de não sei quem e que podia ser legal a gente comprar umas cervejas e ir pra lá. Isso incluía todo mundo, mas o Nicolas já se sentia excluído o bastante e não veio.
Os dois meninos continuavam pescando.
Cada lula que era puxada violentamente pra fora d’água deixava uma nuvem de nanquim e eu ficava me perguntando como seria aquilo do ponto de vista da lula: “- Eu juro, seu guarda: minha mulher sumiu! Eu tava aqui conversando com ela e ficou só uma nuvem de nanquim. Não sei pra onde ela foi. Juro”.

A gente saiu de lá pro lugar onde era o sarau, faz uma paradinha na praia pra fumar e entrou. Quando a Luana entrou foi um furor, porque ela era de lá e tinha ido pra São Paulo fazer teatro. Ela era esperada como a sensação do sarau – principalmente porque ninguém queria ler nada, ninguém queria falar nada e, pelo que a gente podia ver, as pessoas que tinham vindo para o sarau éramos nós e, por não haver como fugir, os donos da casa.
A casa, aliás, era uma coisa magnífica. Todo o tipo de quinquilharia náutica, artesanato, esculturas lindas e enormes feitas em madeira maciça, antiguidades, relíquias. Eu me sentia como se tivesse entrado no campartimento do tesouro de um navio pirata.
Pra virar o jogo, a Luana tinha dito pro pessoal da casa que eu era ator profissional, que eu era de São Paulo, e que eu tinha vindo com ela só por causa do sarau. “Por favor, diz que é senão eles vão ficar muito tristes porque não veio ninguém no sarau deles”.
Era isso: eu teria que enrolar todo mundo.
Fiz uma versão pro monólogo do Al Pacino em “Advogado do Diabo”, misturado com a letra de “Sympathy For The Devil” e todo mundo gostou.
Não tem pessoa no mundo que organizou seu primeiro sarau que não goste de ver aquele clima “Sociedade dos Poetas Mortos”que fica quando alguém apaga todas as luzes e faz um texto demoníaco à luz de uma única vela.
Jogar vela derretida no peito foi idéia minha, é verdade, mas foi só pra dar um toque Alice Cooper pra coisa.
Eu teria cuspido sangue se pudesse.
Teria tocado “Strutter”do Kiss.
O que eu tinha a perder?
Se eu fizesse merda, o que ia acontecer?
Eles iam dizer “você viu o que aconteceu no sarau dos Arras? Veio um ator de São Paulo e avacalhou com tudo”.
Isso seria ruim, mas a culpa seria do autor de são paulo, não dos coitados dos Arras que, naquele momento, estavam dando comida e bebida de graça para todos nós. Se eu pudesse teria chamado Dominic Molise e seu amigo, que viessem e trouxessem as lulas!
Mas, nunca, em hipótese nenhuma, alguém poderia dizer “viu que não foi ninguém no sarau dos arras?”.
NÓS estávamos ALI.
A arte e o bom gosto estavam sob nossos cuidados.
Poderiam não ser bem tratados, mas, pelo menos havia quem tomasse conta e respondesse por eles.
Estávamos fazendo isso: respondendo em nome da arte!
Era mais do que o Maucir costumava me pedir nas provas do curso de teatro do INDAC.

O sarau terminou e a gente foi pra um bar. Parte do pessoal ficou jogando sinuca. As meninas estavam incontroláveis. Levemente bêbadas, elas esvoaçavam como borboletas e o contigente masculino, não muito seguro do quanto havia de sua participação naquilo, limitava-se a olhar e a pensar onde aquilo ia terminar.
A Luana e eu resolvemos fumar na praia e descobrimos que éramos vizinhos em Ilhabela. O pai dela era dono da pousada que havia logo abaixo da casa onde eu estava hospedado lá na praia do curral.
“Fica comigo”, ela disse, “que sua carona é garantida”.
A frase tinha um sentido complemanete restrito, mas admito que foi lindo ouvir aquelas palavras.
A gente nem pensou e nem tentou ficar junto, embora não nego que teria sido bom.
Só que não teria sido a mesma coisa.
E não teria levado ao mesmo fim.

A gente decidiu, depois que ninguém mais aguentava ficar acordado, que ia botar o resto de cerveja num isopor e todo mundo ia pra Praia do Curral ver o sol nascer da areia.
A Luana disse que não e, então, quando a gente chegou na casa do Rodrigo, que morava realmente perto de onde eu estava ficando, ela desceu e disse que iria a pé.
Fui junto para acompanhar e ela achou engraçado.
“Isso aqui não é São Paulo não. Aqui não tem perigo”, ela disse.
Fui mesmo assim porque queria dizer pra ela que tinha sido bom.
A pousada do pai dela ficava realmente perto de casa.
No dia que eu cheguei bêbado e chovia, o segundo tombo que eu tomei – o mais feio – foi na frente da pousada dela.
A gente se despediu e eu fui pra praia.
Eu sabia que, sem a Luana, o Rodrigo e o Ricardo iam passar batido por mim e iriam com toda a cerveja que pudessem pra onde fosse.
Foi justamente isso que aconteceu.
Eu assobiei, gritei e fiz tudo o que cabia ao meu papel, mas eles não reduziram e sequer olharam pra trás.

Olhei pra frente e lá estava o mar.
“Que besteira”, pensei, “o sol se põe aqui no mar. Ele vai nascer é do outro lado da Ilha” e olhei para a montanha e tinha um tucano pousado no telhado do bar do Lourinho. O Lourinho já estava de pé, remexendo nas coisas e lavando o chão do bar.
O céu estava em chamas atrás da montanha.
Foi quando alguma razão estranha fez com que eu lentamente me virasse para o mar.
Era como se Deus tivesse me cutucado no ombro pra que eu olhasse naquela direção, e, antes de desaparecer por completo, sussurrasse ao meu ouvido “olha só isso, meu chapa”.
O mar estava roxo.
O céu estava cor-de-rosa.
Aquilo tudo parecia um poutro planeta.
As cores eram as mais lindas que eu jamais havia visto e eu me sentei na areia da praia e lembrei de tudo.
Lembrei dos caramujos do ponto de ônibus, da carona do Rafael, do pé da Gordinha, no Tony e no João Paulo, dos meninos, de Dominic Molise, das lulas, do Nicolas, do Al Pacino e do Keith Richards.
Lá estava eu e aquela era a vida.

Voltei para a casa e ninguém tinha deixado nenhuma chave para fora.
Entrei pela janela.
O Paxá roncava alto na sala e o Rafael e a Gordinha estavam trancados no quarto - e Deus que me perdoe saber as coisas horríveis que eles fizeram lá.
Sei que depois o João Paulo e a Vanessa chegaram e, depois, vieram o Tony e a Patty.
As coisas ficaram feias pro Rafael e pra Gordinha quando o Igor também foi pra lá e a gente resolveu legalizar a sala.
Então, numa manhã qualquer, enquanto a gente dormia, eles desocuparam o quarto pela janela e foram embora pra uma pousada onde buscaram exílio até o fim da viagem.
Parece que foi porque a gente simulou um ritual satânico na sala, mas não posso confirmar.
De qualquer modo, a história é a mesma de sempre.
Tudo que você espera sempre atrasa.
Aí, então, quando você decide que não vai mais esperar nada, tudo passa a aparecer na hora certa.
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