14.10.09

At Last (ou “Como você, um disco de Etta James e os pés de Muhammad Ali salvaram a minha pele”)





Tem um disco da Etta James que se chama “At Last!”.
É de 1960 e tem sido minha obsessão mais recente.
Baixei esse disco num dia bem atípico.
Tinha uma música nele que eu queria e foi com ela que tudo começou.
Era sexta-feira e eu estava usando coturnos.
Não usava fazia um puta tempo e, depois de ter passado um puta frio nos pés na quinta, porque minhas meias molharam com a chuva, eu não queria dar sopa – nem pro azar nem pra prováveis frieiras.

“Trust in me” era a música da minha obsessão.
Little did he know.

Na real, minha obsessão–mor tem sido outra e já faz tempo.
Chama-se Joice Viana Mendes.
Em menos de 24 horas, a gente estaria junto e isso me maravilhava ainda mais que o disco.
Isso fazia com que o disco – e o universo e tudo mais – fizesse sentido.

Desde o começo da semana, eu vinha andando na rua com pés de Muhammad Ali.
Essa era outra de minhas obsessões menores.
Viciei num jogo de Playstation 2, o Fight Night.
Adotei o Ali como avatar e já faz um tempo que venho construindo minha carreira com ele. Esse dias, beirando as raias do ridículo, depois de ganhar honrosamente de Roy Jones Junior (Jones Junior – nome de pugilista), comemorei a vitória sobre Calvim Brock como se fosse eu quem tivesse levado aquelas porradas todas e apelado pros clinches como eu apelei.
Só que foi nocaute – depois de SEIS knock-downs pra mim.
Quer dizer, pro Ali.
Quer dizer: foda-se.
Eu gritei, pulei e até abri cerveja.
Foi patético, mas... caralho... foi do caralho!

Só que eu andava roubando.
Na madrugada anterior, eu lutei contra um desses lutadores que o computador inventa.
Não lembro o nome dele, mas o filha da puta era o cão pra cair.
Eu tava levando a luta pro décimo primeiro round (achei que eram doze, mas não sei), tendo ganhado TODOS eles até então, quando o cara virou a mesa e eu tava, pela terceira vez, apelando pro clinche.
Pausei o jogo, meti o dedo no botão e desliguei sem salvar.
Pau no cu.
O caralho que ele ia me derrubar.
Não ali, não agora e não numa noite perfeita daquelas quando tudo que eu queria era dormir em paz pra sexta chegar logo.

Então, quando eu acordei, a primeira coisa que eu fiz foi ligar o jogo e cobrir o Oscar de la Hoya de porrada, que é pra isso que ele tá lá (não é?).
Foi um massacre sem tamanho e era só isso que eu queria.
Eu já tinha feito mercado, a cerveja já tava gelando, o café tava pronto.
Enchi uma caneca e liguei o mp3.
Calhou do disco começar justamente com “Trust In Me”.
Esqueci a caneca cheia em cima da pia e fui trabalhar.

Devo ter exercitado o TOC de verificar se a porta ficou realmente trancada umas três vezes porque, quando o elevador chegou no térreo, já tava tocando a música seguinte, “A Sunday Kind Of Love”.
Cara.
Eu me sentia um puta cara de sorte pelo seguinte: as melhores músicas que existem ou são tristes pra caralho ou são felizes pra caralho.
Em ambos os casos, eu gostava delas mais do que jamais gostei.
Quando elas eram felizes pra caralho, eu gostava porque eu ando tendo motivos pra ser o cara mais feliz do mundo – então, elas fazem sentido.
Quando elas eram tristes, elas me deixavam ainda mais felizes – porque eu não precisava conviver com aquele tipo de tristeza.
Era como se eu visse um quadro de uma paisagem com neve e pudesse achar a neve linda – e não sentir frio.

Eu não me engano – eu ia andando pela rua com os pés de Ali, os ouvidos em Etta James – e ia contando as bênçãos, uma a uma, e agradecendo por todas elas – com um coração devoto a mãe de todas elas.

Quando cheguei pra atravessar a Amaral Gurgel, tava tocando “Tough Mary” e a música me fez pensar ainda mais na Joice. Eu já vinha pensando que esse era um disco que ela precisava ter e, com essa música, a coisa ficou irrevogável.
Ela tem batida de rock’n’roll e meus pés de imitar Ali dançavam impacientes, esperando farol fechar.
Quando ele fechou, um carro verde parou depois da faixa de pedestres e eu fui, decidido a passar por trás dele. Esse carro verde tinha um bagageiro daqueles de capô e, em cima desse bagageiro tinha duas escadas e um feixe de canos pretos, de plástico, maiores que o comprimento do carro.
Pulando com os pés de Ali, com Etta James no ouvido e a cabeça em Petrópolis, eu fui.

Não sei por onde foi que a sensação chegou primeiro, mas quando vi, já tava com a mão esticada, tocando o feixe de tubos de plástico que tinha se aproximado ameaçadoramente demais pro meu gosto da minha têmpora direita.
Não sei de onde veio esse reflexo.
O carro verde tinha resolvido dar ré pra tirar o bico do cruzamento com a Major Sertório e provavelmente esqueceu o tamanho das paradas que carregava no bagageiro do capô.
Eu estava em outro planeta, mas botei a mão neles como quem apara um cruzado sinistro daquele lutador que eu não sei o nome, dei dois ou três passos pra trás, com os pés de Ali.
O motorista do carro, de olhos arregalados, pediu desculpas quando eu olhei pra trás. Meneei com a cabeça, como quem diz “esquece, não foi nada” e continuei.
Meus ouvidos voltaram pra Etta James e a música que tinha acabado de começar. Reconheci logo no primeiro acorde.
Se você conhece esse disco, “At Last”, você sabe qual é a música que vem depois e eu não preciso dizer onde estava minha cabeça.
Ela não estava esparramada em pedaços embaixo do Minhocão e isso me bastava.
Eu contava minhas bênçãos e estava feliz pra caralho porque a mãe delas estava pra chegar.
Faltava pouco e aquela música me dizia tudo que eu queria.

Quando cheguei na Praça da República, a faixa título me acertou como um raio. Tem um gesto que eu faço sempre que uma coisa me é sagrada, que é beijar o nó do dedo da mão esquerda e, todo dia, quando eu passo lá atrás do Caetano de Campos, repito esse gesto.
Naquele lugar, quando esse disco não era tão velho assim, minha existência foi viabilizada pra, depois – bota aí “quarenta anos depois” – ela ser justificada.
Naquele lugar, começou a tocar “At Last”, a música, cuja letra diz o seguinte:

“At last, my love has come along
My lonely days are over
And life is like a song
Oh, yeah, at last
The skies above are blue
My heart was wrapped up in clovers
The night I looked at you
I found a dream that I could speak to
A dream that I can call my own
I found a thrill to rest my cheek to
A thrill that I have never known
Oh, yeah when you smile, you smile
Oh, and then the spell was cast
And here we are in heaven
For you are mine
At last”

Enfim.
fim.

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