7.7.09

o dia em que meu avô morreu




Eu tava indo pro trabalho, tinha tentado ouvir “A Kind Of Blue”, mas o dia estava lindo demais praquilo.
Botei Arnaldo Baptista, “Loki?”, e o Arnaldo ficou.

Eu tenho um mundo imaginário no ponto de ônibus.
Mais que um mundo imaginário.
É uma espécie de céu.
Eu acho que ali, naquela poça d´água, pode haver um céu.
Me deixa.

É uma poça d´água rasa com uma parte mais funda.
O desenho dela me lembra um mundo, porque tem dois continentes, tem umas ilhas interessantes e sempre tem um corpo estranho boiando na água.
Dependendo do livro que eu estou lendo, é um morto diferente que mora lá.
Na ilha tem sempre um Marlon Brando, no mar tem sempre um Humphrey Bogart a bordo de um Santana.
O resto varia.
Sempre deixo pra jogar o cigarro naquele céu imaginário.
Sempre é o segundo cigarro, que é aquele que faz o ônibus chegar.
O primeiro é o que chega com você no ponto e o segundo é aquele que, tão logo você acende, o ônibus passa e te obriga a jogar fora depois de dois tragos.
Aí, eu fico pensando em como é que eles agem por lá.
Teve um dia que eu joguei o cigarro e ele ficou na ilha do Marlon Brando.
Na maioria das vezes, ele se apaga no mar.
Naquela quarta, joguei o cigarro e ele quicou de volta pra minha direção.
Subi no ônibus, com a passagem trocada na mão, pensando “legal, eles têm campo de força”.

Tinha lugar pra sentar, mas demorou porque tinha uma tia gorda que não achava o dinheiro e dois capiau não sei de onde, um mostrando pro outro as maravilhas do bilhete único.
Só que o Arnaldo tava cantando “Cê ta pensando que eu sou loki, bicho?” e eu não tava nem aí.

Quando “Loki?” acabou, eu ia entrando na Paulista e achei que era boa idéia ouvir Bruce Springsteen já que era bem provável que eu apagasse tudo do mp3 no fim do dia, então, era ouvir naquela hora ou nunca.

E foi justamente quando eu estava em pé na porta, ouvindo na introdução de uma música que eu não lembrava qual era, mas que eu achava fantástica, é que o telefone tocou e era minha irmã dizendo que era melhor eu correr pro hospital.

Quando cheguei lá, ele já tinha ido e a menina da recepção não me deu permissão pra subir.
Disse que meus pais estavam descendo, mas quem desceu foi só meu pai e ele, enorme do jeito que é, me deu um abraço forte, me botou de pé, me indicou o quarto e, então subi.

Vi minha irmã, com os olhos tristes, depois vi meu irmão, consternado e então, quando a parede do corredor acabou, vi meu avô, pálido, com a boca aberta como se tivesse sido por ali que sua alma deslizou rumo ao céu.

Um céu azul daquela quarta-feira, dia 28 de novembro.

Quando ia pro hospital, por volta das duas da tarde, já sabendo que meu avô havia morrido, olhei pro céu de lado a lado e não vi uma única nuvem.

Rezzieri Tuccori foi pro céu em uma tarde de céu de brigadeiro.

Minha primeira reação foi pegar a mão do meu avô, que era uma coisa que há anos eu não fazia.
Olhei os seus dedos.
Aqueles mesmos dedos que se enlaçaram em meus cabelos nos melhores anos da minha vida.
Aquelas mãos que fuçavam nas coisas, como meu pai faz, como eu faço e que minha mãe chama de “mãozinha de seu Rezzieri”.
De joelhos, eu ainda tinha a esperança infantil e boba de conseguir devolver o calor ao corpo dele com as minhas mãos.
Os pulsos largos.
Ele morreu com a mesma boca aberta que ele dormia depois do almoço, antes do jogo do Palmeiras.

Foi só depois de me despedir dele que pude ir cumprimentar meus irmãos.

Logo, minha mãe chegou e nós tivemos que sair do quarto pra que as enfermeiras vestissem o corpo do vovô com as roupas que minha mãe havia trazido.

Coisa mais tenebrosa ver uma infinidade de bilhetes com instruções para o enterro, escritos ora na letra do meu avô, ora na letra de minha avó, papelada do jazigo no cemitério do Morumbi.
Saber que minha avó já se chamou Iracema Gabrielle, que o sobrenome polonês da minha bisavó é Draminski e que Amaral Gurgel é meu parente, além de fazer esquina com a rua em que eu morava antes.
O pior, porém, foi voltar pro quarto e ver o meu avô todo amarrado pra que, quando a fada do rigor mortis passasse, ele estivesse na posição em que passaria a noite no velório.

Antes que nós descêssemos para o necrotério, que é onde o corpo seria colocado no caixão e levado para o velório, minha irmã e eu nos despedimos dele com um beijo na testa.

Mesmo não querendo, fomos comer alguma coisa e minha irmã quase ficou doida comigo, porque eu só queria comer em algum lugar que tivesse Malzbier pra vender.

Tinha que ter Malzbier.

A primeira vez que eu bebi cerveja junto com um adulto da minha família, foi em Poços de Caldas, de frente pra praça do coreto, com meu avô.
A gente tomou Malzbier.

Isso é coisa que nunca se esquece.

Voltei pro hospital e fui, avisando, aos poucos todo mundo que precisava avisar.
Na rádio, eles já sabiam.
Faltava avisar na peça.
Teríamos apresentação na quinta, seria justamente o dia do enterro e eu não sabia – mesmo – o que seria daquele dia.
Honestamente, não poderia dar nenhuma previsão de como ia me comportar.
O que eu sentia, não cabia em mim e o que pude fazer foi assumir isso.
Sentia uma dor de cada vez e olhava para cada uma delas com olhos curiosos.

Minha mãe estava na morgue, ao lado do corpo coberto por um lençol, atrapalhada, tentava resolver as questões de ordem prática.
Os sapatos não cabiam nos pés do meu avô e eu não conseguia sair de perto do corpo.
Eu tinha uma vontade legítima de deitar ao lado dele.
Tive que sair pra telefonar pra Virgínia e avisar o que tinha acontecido e dizer que não sabia como seria. Se eles conseguissem alguém, ótimo, mas, caso não conseguissem, que me fizessem saber.

Quando chegou o carro com o caixão, veio junto com ele um homem tinha sido pago pra cuidar daquilo. Ele me pediu ajuda pra botar meu avô no caixão. Disse que não fazia mal se a gente o deixasse sem sapatos porque o caixão ficaria fechado na parte de baixo e ninguém repararia. Peguei meu avô pelas canelas e quando aquele cara o levantou por baixo dos ombros, me deu vontade de socar tanto a cara dele, mas tanto, que...

que bobagem.

Lembrei de quando eu era bem pequeno, não sei nem se minha irmã já era nascida, e meu irmão e eu pegamos o guarda-chuva dele e ficamos jogando de um lado pro outro, com ele no meio, tentando pegar.
Num momento, vi que ele cansou.
Não fazia muito tempo que ele tinha sido operado, feito ponte de safena, e, quando percebi que ele estava cansando, parei a brincadeira.
Estendi o guarda-chuva de volta pra ele e abracei-o com tanta força que parecia que minha intenção era segurá-lo o tanto que pudesse nesse mundo.

No mesmo dia, na mesma brincadeira, descobri, ao mesmo tempo, a inevitabilidade tanto do amor quanto da morte.

Quando meu pai chegou, dei graças a Deus por meu avô já estar dentro do caixão.
Eu aceitava que o corpo dele estivesse ali, mas não podia permitir que ninguém me mostrasse que aquilo que eu não queria acreditar que fosse verdade era justamente verdade.
E não aceitava tampouco que meu pai visse.
O velório já seria sofrimento o bastante.

E veio o velório.
Aos poucos, as pessoas foram aparecendo.
Tinha uma moça que trabalhava de enfermeira da minha avó que estava devastada.
Ela me contou que achava meu avô um herói e que uma vez, no meio da noite, ela se espantou com o ânimo do seu Rezzieri em cuidar da minha avó, cuidar dele mesmo fazer piadinha e ainda rir delas mesmas.
Ela sabia que ele sabia que tinha câncer.
Ela não entendia como é que ele lidava com aquilo.
“Eu tenho uma coisa muito ruim dentro de mim, então, eu não posso dar folga pra ela”, ele disse.
E ela chorava.
E eu chorava.
E diz que minha avó, quando ele saiu de casa pra ir pro hospital, dizia: “tá na hora, Rezzieri, tá na hora!”.
E, quando ficou bem tarde, meu irmão me deu carona pra casa e, ao contrário do que eu esperava, foi fácil dormir e foi mais fácil ainda acordar com o primeiro toque do despertador no dia seguinte.

Entrar no metrô de manhã me deu desespero.
A fila pro embarque na linha azul já começava no andar de cima, no desembarque da Sé.
Pensei: foda-se.
Espremi, fui espremido, mas consegui chegar em cima da hora.

O cemitério do Morumbi parece uma coisa de outro mundo.
Um imenso descampado, cheio de árvores, clareiras e moscas varejeiras do tamanho de canários, que voam contra o sol e cagam uns pinguinhos prateados que somem antes de chegar no chão.
Se você achou isso nojento é porque não viu os caras que desceram o esquife.
Caralho.
Eu queria pegar aquele caixão com os meus braços.
Queria EU fazer isso e não aqueles corvos.
Dava a impressão que, se meu avô levantasse e pedisse pra sair do caixão, eles eram capazes de bater nele com as costas da pá e prosseguir o funeral.
Pensei no meu pai.
Não fiz nada.

Duas horas depois, eu estaria na Dirce, lá no fundo da galeria da rádio, onde ela faz fundo com a alameda Santos, tentando, com um x-bacon e uma Malzbier, empurrar de volta pro estômago o gosto ruim que era esse de um mundo sem o seu Rizzieri.

Não consegui.

Uma semana depois, eu tava encostado na parede do ponto, esperando o ônibus passar.
Fazia uma semana que meu avô tinha morrido eu tinha tido três sonhos com ele.
Então chegou um sujeito no ponto de ônibus.
Era o tipo de cara que dava pra fazer piada.
Terno branco bem grosso, pulôver verde e branco, óculos falsificados que todo coreano vende no stand-center e aquele ar de tédio inconformado com a vida.
Uma tristeza imodesta e fútil.
Eu olhava pra poça d´água e perguntava se o seu Rizzieri já havia chegado no céu.
E se aquele céu que eu imaginei que fosse de Marlon Brando e Humphrey Bogart fosse o céu dele também?
Foi então que o ônibus elétrico chegou, bem sorrateiramente como ônibus elétricos normalmente fazem, meteu a grande roda da frente dele na parte funda da poça e jogou uma onda de barro, pó e lama em cima do terno branco do sujeito no ponto.

Daí, eu soube.
Seu Rizzieri não só tinha chegado no céu como também já tinha feito amigos por lá.

Agora sim, o céu era céu.



(obrigado à Joh por ter me inspirado a resgatar este texto e terminá-lo)
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2 comentários:

Lécio disse...

Li seu texto meio sem conseguir respirar direito. Fico imaginando se ele e minha vó já jogaram baralho juntos.

Calu Baroncelli disse...

fantástico!
seu avô e o texto.