17.7.09

heart is saved





Hospital São Camilo, dezembro de 2005.
Sentado na sala de espera, penso se não sou muito novo pra ter tido um enfarte.
Tenho 32 anos.
E 2005 tem sido um daqueles anos esquisitos, em que tudo acontece ao mesmo tempo.
Foi um ano que até começou bem.
Na metade, ele foi ficando meio indomável e eu tive que andar antes que me fizessem correr.
Saí da casa dos meus pais, vendi o carro e fui morar com o Marcelo, na república que ele mantinha perto do Indac.

Foi naquele ano que vi o show que mais queria ver na vida: Iggy com os Stooges.
E vi do palco.
Foi quando deu aquela sensação irreal de cheiro de napalm pela manhã.

Ali, sentado na sala de espera do São Camilo, enquanto encarava a finitude da vida e tentava assobiar “obla-di obla-da” ao mesmo tempo, eu olhava pra trás e era perfeitamente capaz de pra ver a marca d'água.
Dava pra ver direitinho onde aquela onda magnífica bateu, quebrou e, então, recuou pro mar.

O céu começou a escurecer, de leve, quando o povo que dividia casa comigo começou a sair fora da casa. Coincidentemente o bastante, um rato – na época a gente achava que era um só – vinha fazendo a festa na comida que a gente largava em cima da mesa e deixando seus ínfimos cocozinhos espalhados por cima da pia.

No começo do mês, meu chefe me chamou na sala dele, disse que ia cortar meu salário pela metade e que eu poderia trabalhar em casa.
Seria uma notícia mais ou menos razoável.
Isso, caso eu tivesse condições de trabalhar em casa.

Fora isso, tinha mais dois problemas sobre os quais não vale a pena comentar – apenas dizer que eram chatos, inevitáveis, e incomodavam pra caralho como a morte de um ente querido.

Cada vez que eu pensava “caralho, que merda”, alguma coisa me dizia “fala baixo, senão piora”.

O que eu podia fazer?
Marcar um ensaio com o Terremoto Torquemada, claro.
A gente já vinha falando isso desde o show dos Stooges.

Era fim de ano e pareceu uma boa idéia fazer um ensaio recreativo.
Juntar Terremoto Torquemada e Carbono 14 e tocar até cansar.
Isso significava que o Rodrigo, do Projeto Chã, ia tocar com a gente, porque ele era o único integrante do Carbono que não fazia parte do T&T.
Isso também significava que a gente ia tocar alto pra caralho, sem controle nenhum, com três ou quatro guitarras, um ou dois baixos e a gaita do Ricardo, com toda a microfonia que só ela era capaz de proporcionar.

Naquela época, ensaios com Terremoto Torquemada envolviam duas garrafas de Dreher.
Aquele ensaio, em especial, envolveu duas.
E a gente acabou com elas surpreendentemente rápido.

Na noite do ensaio, eu tava a encarnação do demo.
Não adiantava ninguém vir querer fazer cover disso ou daquilo.
Minha viagem era brincar de Mike Patton e gritar em cima de tudo, mais alto – cada vez mais alto. Queria que minha voz se fodesse, que minha garganta explodisse, que minha traquéia espirasse pra fora e ficasse balançando como uma língua de sogra, ao sabor de todo o vento que meu pulmão fosse capaz soprar.
Cantei como um cara que quer morrer de tanto gritar e toquei daquele jeito que deixava lascas dos dedos nas cordas da guitarra.

É normal eu sair do ensaio meio rouco, mas naquele dia, eu saí completamente sem voz.
Não tinha mais como voltar pra casa, mas o Ricardo me levou.
Eu tava tão bêbado que, a primeira coisa que fiz ao desembarcar do carro, foi vomitar em todo o jardim do vizinho.
Era um cabelereiro e eu vomitei através da cerca, direto no mini-playground que ele mantinha.

Entrei em casa, branco, e fiquei estirado no sofá da sala, vermelho.
White Stripes total.

Foi quando gritaram “RATO!” na cozinha e alguma coisa correu pro meio da sala.
Levantei daquela porra de sofá vermelho, peguei um pedaço de pau – que já havia sido reservado justamente pra uma ocasião como essa.
O rato correu pra baixo da escada, eu fui cercando.
Cutuquei lá embaixo e ele subiu num vestido de figurino que o Marcelo guardava ali, quando eu bati no vestido, eles cairam – ambos.
O rato prosseguiu, passou por mim e voltou pra sala.
Eu pedia ajuda pra cercar o rato e só gritos histéricos respondiam.
Eu não queria matar e, de fato, não matei.
Ele conseguiu correr pro quintal, se esconder num buraco – que o corretor dizia ser o porão da casa (lugar onde o Marcelo, quando se mudou pra lá, encontrou um fóssil de um animal que poderia até ter sido um cachorro um dia).
Tapei o duto de ventilação do porão, botei uma pedra em cima e, por enquanto, parte do problema estava resolvido.

Aí, conforme a tonteira foi passando, foi me dando um pouco de medo.
Não conseguia respirar direito.
Definitivamente não conseguia.
Quando ia respirar mais fundo, doía pra caralho.
Doía no peito, forte, de fazer gemer baixinho porque não havia nem ar pra gemer mais alto.
Meu braço formigava.
“Enfarte?”, eu pensava.

Eu deveria ter ido ao hospital naquela hora, eu sei.
Não dava para respirar direito, não dava para falar direito, eu estava meio bêbado e meu braço esquerdo estava dolorido.
Eram coisa de quatro horas da manhã.
Na real, não achei que fosse morrer e esperei até o dia seguinte

“Aos trinta e dois anos, com um enfarte?”, perguntava eu, no dia seguinte, quando o médico chamou meu nome.

Ele olhava pra mim com um sorriso sádico daqueles que todo estudante de medicina aprende durante os anos todos na faculdade e, depois, vai afiar fazendo residência.
Ele tinha meus exames na mão e, se meus exames fossem cartas e a gente estivesse jogando truco (pôquer) , ele tinha casal maior na mão (uma quadra de ases) e não sabia blefar.

“Fernando, você não teve um enfarte, pode ficar tranquilo”, ele disse.
De fato, fiquei tranquilo.
“Você disse que ensaiou com sua banda. O que você faz na banda?”.
Respondi “canto e toco guitarra” apesar de saber que o que eu faço não é nem cantar nem tocar guitarra.
Ele pareceu sem graça ao perguntar: “quanto tempo durou o ensaio ontem?”.
Respondi que durou umas três horas.
Quatro.
Bom... talvez cinco.
“Você grita muito?”.
“Ahn. Um pouco”.
“Ok. Essa dor no seu braço esquerdo provavelmente é de tocar guitarra. Você é destro?”. Confirmei com a cabeça. “É justamente a mão que você usa no braço da guitarra, não?”. Confirmei com a cabeça. “E essa dor no peito, Fernando, eu imagino que seja porque você gritou até o limite dos seus pulmões. Deve ser por isso que você está sem voz, não é?”. Confirmei com a cabeça.

“Não se preocupa. Tá tudo bem com seu coração, Fernando”.

Hoje, eu sei que ele errou e acertou naquele dia.
Não era um enfarte, eu sei.
No entanto, quatro anos se passaram e, hoje, eu tenho vontade de ir até lá só pra dizer que, agora sim, meu coração tá salvo.


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