5.4.09

As melhores férias de verão de toda minha vida (em memória de Kurt Cobain)



Foi dia 16 de janeiro de 1993.
Dia de show do Nirvana no Morumbi.
Dia de prova da Cásper Líbero - vestibular para o curso de jornalismo.
Alguma coisa me dizia que eu deveria ir ao show e cagar pra prova.
A tal "alguma coisa" talvez fosse eu mesmo, aquela figurinha esquisita, de bermudas larger than life, camisetas que caberiam no Jô Soares e - ah, sim - um tortíssimo moicano na cabeça.

Pra quê é que eu ia ficar numas de ser ou não ser, quando já era?
Get behind me, Dorothy, 'cause Cásper is goes bye-bye.

Veja bem: era dia 16 de janeiro, um sábado.

Na segunda-feira, dia 11, meu nome havia aparecido na lista de aprovados da FIAM.
E em vigésimo-oitavo lugar.
Depois de comemorar discretamente com amigos que estavam comigo, mas não tinham tido a mesma sorte, fui pra casa da garota com quem tinha ficado no Natal.
Lá, a gente decidiu que podia tentar começar aquele que seria meu primeiro namoro que teria a ousadia de ter razão em se chamar namoro.

Na terça, dia 12, foi aniversário da Simone e do Américo, que eram meus dois melhores amigosm 1993.
Naquela noite, a Simone tinha dado festa na casa dela, como de costume. Encontrar com ela, a Gisela, a Camila, a Gabi e toda a família da Si era uma coisa que me deixava tão bem que dava até a impressão de que não havia maneira de a vida não ser boa.
O Américo já tinha dito que a festa dele ia ser no Morumbi, tanto na sexta, quanto no sábado do Hollywood Rock 93.
Na quarta, dia 13, meu cabelo se foi.
Isso implica em dizer que eu era o primeiro de toda a turma do cursinho a poder cumprir a promessa de passagem.
Mesmo os alunos mais formidáveis ainda esperavam o resultdo da USP. A FIAM já havia me dito "você é nosso" e eu gostava - meu deus! eu GOSTAVA - daquilo! (#littledidheknows)

Fui até o Aki Jaz (o barbeiro onde eu cortava o cabelo chamava "Aki Jaz" e ficava de frente pro cemitério da Vila Mariana, onde meus avós estão) e contei o plano para o Magrão, que cortava meu cabelo sempre.
Ele não gostou da idéia.
Isso evidentemente ia contra nosso trato não verbal - aquele em que eu dizia como queria que ele cortasse meu cabelo e ele, depois de comentar o noticiário todo e falado sobre a atual capa da playboy, esquecia tudo que eu havia dito e cortava do jeito que ele achava que ia ficar bom.
"Como assim moicano?", ele me perguntou, com aquela maquininha buzbuzzando na mão.

Inclinei meu corpo da cadeira, peguei a maquininha da mão dele.
Passei de um lado.
Passei do outro.
Deixei só uma tira felpuda no meio.

"Tá vendo essa faixa de cabelo aí?", eu disse.
Tira todo o resto e deixa só ela".
E, olhando pra cima, levantei um dedo ao dizer: isso, meu amigo, é um moicano".

Naquela época, havia um quarto na casa da minha avó, onde eu ficava a maior parte do tempo.
Era o estranho mundo de Fernando Tucori.
Era lá que ficavam meus discos, meus raros e parcos CDs e minhas gavetas entupidas de fitas.
Era lá que morava meu aparelho de som.
Foi de lá que eu vi Seattle tomar o mundo.
Sentando, no telhado, vendo o Ipiranga, onde D. Pedro, o das costeletas legais, gritou "independência ou morte" (e as pessoas até agora não perceberam, mas todo dia escolhem "morte")
Era lá que eu morava, apesar de dormir na casa dos meus pais todas as noites.

Foi pra lá que eu corri, sentindo as primeiras gotas de chuva batendo na minha cabeça seminua.
Foi lá que meus amigos mais chegados foram me buscar pra tomar cerveja, pra falar besteira e lambuzar minha pele com uma mistura funesta de graxa, tinta verde, óleo de carro, clara de ovo e penas de travesseiro.

Na sexta-feira, quinze banhos depois, eu era outra pessoa.

Outra pessoa MESMO.
Foi o jeito que eu arrumei pra não passar por mais um trote.

Fui vestido com roupa do exército, coturnos com esporas e com as palavras "white power" escrito nas laterais do crânio, fui fazer a matrícula na faculdade e - talvez por causa da minha aparência - nenhum dos veteranos que estava lá encostou em mim.

Matrícula feita, botei um boné que escondesse o "white power", fui até o bar do seu Wilson, pedi uma cerveja - que o seu Wilson mesmo dividiu comigo - e uma barra de sabão de coco, que ajudou bastante a tirar aquilo da cabeça.

Foi só na sexta mes
mo, depois de ter ouvido todo mundo contar como tinha sido o show do Red Hot, que decidi.
A Cásper Líbero que se fodesse.
Custasse o que custasse, eu ia ver o Nirvana.

E só custou uns vinte reais mais.

Comprei ingresso de cambista sim.
Tomei jato d'agua na cara no meio do show do Doctor Sin
(e, sim, aquilo fez com que TODOS os meus cigarros fossem destruídos nos primeiros minutos de show).
Cuspi no distintivo do São Paulo sim (mentira: mijei).
Vi o Maurício Kubrusly levar um saco de mijo na cabeça na frente das câmeras sim.
Dei entrevista pro Gastão na MTV sim.
Ganhei um beijo de uma mulher famosa sim e, sim, fiquei sem saber o que fazer.
Eu era virgem em 16 de janeiro de 1993.
Em 25 de janeiro, já não seria mais, mas, no dia 16, eu só acreditava que talvez isso fosse possível, mas preferia não pensar muito sobre o assunto.

Tudo só contribuiu para que, quando o Nirvana subisse ao palco, eu tivesse certeza absoluta de que estava vivendo os melhores dias da minha vida de adolescente.

Então veio o show.

Kurt Cobain estava de calça jeans e camiseta branca, o que, na minha linguagem de combinação de roupas, queria dizer "de alma limpa".

Flea participou de "Smells Like Teen Spirit", Kurt afinava a guitarra no meio das músicas e, lá onde eu estava não dava pra ver nada direito.
Nada a não ser uma banda de garagem, tocando como uma banda de garagem e se comportando como uma banda de garagem e, mais ainda, fazendo questão de ser vista como banda de garagem, como por exemplo, na hora que eles pararam o show e o Kurt Cobain pediu para que tirassem as luzes da cara dele porque ele não conseguia enxergar nada.

Naquela época, a gente tinha um trato com as meninas.
Como sempre tinha alguém famoso e elas sempre queriam conversar com alguém famoso, elas sempre iam me pedir pra apresentar.
Não que eu conhecesse alguém, mas eu podia chegar lá e dizer "olha, minhas amigas estão a fim de conversar com você. tudo bem?".
E geralmente funcionava.

Tinha recém-funcionado e elas estavam trocando idéia com os irmãos Busic e mais o Supla e eu queria, de todo modo, arrumar um cigarro.

Fiquei olhando o Kurt e ele parecia uma criança no palco.
Na hora que eu percebi que, na real, ele tava brincando d epega-pega com o cara que tentava iluminar sua figura com um spotlight, comecei a andar na direção do palco.
Deixei as meninas lá e, como quem vai caçar cigarro, fui em frente.

Do nada, eles trocaram de instrumentos e começaram a tocar covers.

Não eram covers normais - eram covers feitas por gente que sabia o que tava tocando, gente que comprou disco a vida toda e que gostava de ouvir música, mesmo que fossem aquelas músicas.
Quando Kurt Cobain foi pra bateria e começou a batucar a introdução de "We Will Rock You", eu corri pra frente do palco.
De alguma maneira, eu sabia que havia uma coisinha diferente lá.
Fosse pela ironia, fosse pelo non-sense, aquela bandinha de merda, aquela bandinha de garagem, estava fazendo história de alguma maneira que eu não reconhecia.

Estava acontecendo diantes dos meus olhos.

Tocaram "Should I Stay Or Should I Go" sim.
Tocaram "Rio" sim.
Tocaram "Run To The Hills" sim.
Tocaram "Kid In America" sim.
Tocaram "867-5309/Jenny" sim.
E tocaram, sim, outra música que eu não sabia qual era não.

Sei que essa música tinha uma letra triste, que soava como uma despedida, mas eu não reconhecia, não sabia de quem era.
Por anos, tentei descobrir que porra de música era essa até que um dia alguém me mostrou a gravação de "Seasons In The Sun", de Terry Jacks e, na primeira orelhada, dava pra saber que era ela.
É uma versão de uma música francesa que, no original, chama "Le Moribond" e quem cantava era Jacques Brel (vê aqui, com legendas em inglês).

O que ainda me impressiona, mesmo todos esses anos depois, é a capacidade de Kurt tinha para dizer tudo com músicas.
Ele sabia tanto de música e conhecia tantas músicas que podia dizer o que quisesse apenas colocando algumas delas em uma ordem específica.
Poderiam ser músicas dele mesmo ou covers, como essa "Seasons In The Sun", que ele vinha tocando insistentemente e, naquele dia, da bateria gritou "adeus" até sangrar a garganta e nenhum de nós percebeu.

Olhando aquele adolescente daqui, com esses que hoje eu tenho, com a letra de "Seasons In The Sun" na aba de lá, aquele momento de alegria único ganha uma mácula.
É uma mancha vermelho-sangue que não percebi na ocasião, porque eu juro que achei aquilo tudo muito engraçado.
è como ter o ataque de riso mais delicioso do mundo, rolar no chão, rir apontando pra cima, até estrebuchar e, depois, no fim, tossir sangue.

Naquela letra, Kurt dizia adeus para os amigos, para o pai, dizia que era difícil morrer, mas que lembrava sempre das férias no sol, que eram sempre maravilhosas e iam permanecer maravilhosas depois que ele morresse.

Aquele janeiro de 1993 foram as férias de verão da minha vida toda.

No final do show, Kurt quebrou tudo. Ele não é um cara forte, do tipo que, se bater com a guitarra uma vez no chão, ela já era. Porém, ele compensava isso escolhendo os lugares que ia quebrar. No vídeo que tem lá em cima, dá pra ver a hora que ele racha a guitarra no meio. E terminou, emblematicamente, com Kurt metendo a guitarra dentro de um ampli, que fez vários chewbaccas gritarem "gol" pro Morumbi todo.
Eu estava bem na boca do palco nessa hora e, cada golpe de guitarra que ele dava, parecia ser em meu nome, em nome de cada um de nós.
Era sério aquilo.
Foi nessa hora que percebi todo o L7, Anthony Kiedis, Flea e mais um monte de estrelas das outras bandas, todos nos bastidores olhando aquilo e achando a coisa mais engraçada do mundo.

Só que quando o Kris Novoselic chegou por trás do Kurt e envolveu os ombros dele em uma toalha branca, como quem diz "é isso aí, meu amigo. chega por hoje", ele fez isso com uma preocupação real, que passou batida por todos nós.

Pra nós, era tudo lindo.
Estávamos todos em nossa época mais ensolarada.
Aquelas eram as férias de verão das nossas vidas.
E as estrelas estavam todas ali, ao alcance de nossos olhos e de nossas mãos.

Mas a maior de todas as estrelas que a gente podia alcançar era aquela estrela do mar, agonizando sozinha no calor da areia da praia.



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1 comentários:

Marie disse...

poxa, fernando.

estou aqui embasbacada pensando no que dizer, concluindo com uma dorzinha chata no coração que simplesmente, não há nada a dizer.


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