1.3.09

Uma (nova) temporada no Inferno (28/02/2009)




Tava aqui em casa ontem, fuçando no meu primeiro caderno de redação e tinha lá um ditado de acentuação. Pelas datas do caderno, isso foi entre 1983 e 1984, ou seja: eu tinha coisa de dez anos de idade.
A primeira palavra do ditado era “diplomático”.
A segunda palavra era “cocaína”.
Cocaína.
Hoje em dia, coitada da professora que botar “cocaína” num ditado de acentuação.
Eu mesmo, ontem, não pude colocar no GC a frase “atitude é que nem braço: uns têm e outros não” e não pude porque a censura do programa é dez anos de idade.
Ter dez anos de idade em 1983, era uma coisa.
Ter mentalidade de dez anos em 2009, aos 35 anos, é outra, completamente diferente.

Cheguei de Osasco e a Calu veio aqui: a gente tinha combinado que ia pro Inferno.
A última vez que eu fui pro Inferno foi com ela.
Foi numa sexta-feira santa, no ano passado, pra ver Vanguart, cantando que acredita no semáforo.
Depois disso, o Inferno fez falta.

“coisa difícil que é essa
de ter que parar de conversar com você
dá vontade de tudo,
dá vontade de nada
dá vontade de nem sair
dá vontade de ficar em casa
fazendo poemas com os dedos
desenhando no ar
só esperando você voltar”


Na real, eu não queria muito ir.
Por outro lado, sabia que seria bom se eu fosse.
Fui ver no site da casa quais seriam as atrações da noite.
Ia ser uma festa de ska.
Iam tocar Extra Stout, abrindo, e Pingüins Tropicais, fechando.
Ska, funk e jazz.
O Thiago DJ ia dar som.
O Thiago dando som implicava em uma probabilidade enorme de encontrar o Gu por lá e isso seria bom.
Bom porque eu podia cobrar que ele devolvesse meu macacão e melhor ainda porque encontrar o Gu no Inferno sempre é garantia de diversão.

O meu assunto com a Calu era o mesmo desde que ela chegou aqui.
Repetia pra ela aquilo que minha avó falava, que, pra um homem, existem duas mulheres: aquela que põe você num mundo e aquela que põe um mundo em você.
Eu não conseguia parar de falar dessa mulher que andava botando um mundo pra dentro de mim.
Eu estava feliz e sabia que, mesmo que eu aparentemente não quisesse, sair e dançar ia fazer bem. E dançar ska, como o Igor diz, "é do caralho porque a gente pode fazer todo tipo de palhaçada enquanto dança".

Eu queria ir num show em que eu pudesse dançar tanto quando pudesse – mesmo que ninguém percebesse.
Queria um show onde eu pudesse me sentir feliz e dançar essa sensação - só não sabia se era possível.
O que eu não sabia era isso: que era inevitável.

Quando a gente chegou na frente do Inferno, a Paola estava lá na frente recebendo as pessoas e a fila era um monstruosidade. Do nada, escutei: “Ow, Tucori!”.
Era o Gu.
Ele tava com o Thiago DJ, o Cabelo e mais dois caras que eu conheci ali.
Como a fila continuava grande , a gente resolveu que ia no Bahia tomar cerveja. Até tinha uma mesa vaga lá no fundo, perto da (ocupada) mesa de sinuca.
Só que era tão quente lá dentro que dava na mesma a gente montar a mesa em cima da chapa.
Cada um pegou o tanto de cerveja que achava que devia e levou pra rua.
A gente encheu os copos e foi fazer um brinde – ao gerador de improbabilidade infinita.
Conforme elas iam acabando, o que não demorava, a gente botava no meio-fio.
Assim, o Cabelo pode comprovar várias vezes a teoria dele de que, com a gente, garrafa que tomba é só garrafa vazia.

A fila pra entrar no Inferno continuava enorme e, de certa forma, aquilo me dava uma puta alegria.
Porque é um casa legal e que merece estar cheia de gente do jeito que parecia que ia ficar.
Mesmo eu - que não gosto de lugares cheios de gente - e vi, no Inferno, alguns dos melhores shows dos últimos anos em noites em que havia poucas pessoas, achei que já era hora da coisa virar.
Do nada, uma menina grita “Ô, Gu!” e eu brinco com a Calu que o Gu devia ser vereador.
Nem terminei de falar e escuto “ô, Tucori!” e é o Ivan.
O gerador de improbabilidade infinita acende a luz azul.
A menina que chamou o Gu é a namorada do Ivan, que toca no Unplay e o Gu já havia sacado isso quando viu as fotos do show em que eu substituí o Ricardinho no vocal.
E é bom pra caralho encontrar o Ivan que é um puta cara legal e, mais legal ainda, é ver que ele achou do caralho aquela ver que eu substituí o Ricardinho nos vocais. Ele lembra que tem shows logo mais é que é pra eu ir e participar de algumas músicas. Eu acho isso do grande caralho e, só isso, já me bastaria pra ficar feliz pelo resto da noite.

A gente se despede e resolve ir pra fila. Lá na fila, um velhinho quer vender pra nós as últimas três latinhas que ele trouxe pra vender. Ele pede oito reais e a gente acha justo. Ele diz assim: “o barato é louco, o processo é lento e o advogado é nóia”.
As latinhas estão trincando de geladas.
Brindamos, de novo, ao gerador de improbalidade infinita, que eu juro ser meu parceiro na sinuca.

A Paola recebe a gente na porta. Desde que eu fui lá a primeira vez, e ela que me recebe na porta. Nas poucas vezes que eu fui e ela não estava lá, eu não me senti como se fosse o mesmo lugar. Passo pelo vestíbulo felpudo, que, sendo ali o Inferno, poderia ser chamada de Purgatório e tenho um acesso de tosse digno de Doc Holliday.

Logo que a gente entra, dá de cara com o Amauri e ele leva a gente lá pra cima, na área Vip, onde a gente acende a velinha do bolo de aniversário e vai passando, fatia em fatia, de mão em mão.
Anos indo ao Inferno.
Todas as vezes podendo subir ali, na parte de cima, e eu – na minha brincadeira de estar sempre lá perto do palco – nunca subi. Os sofás vermelhos, as luminárias da parede e aquela parte da casa é o Céu, dentro do Inferno.
Foi lá que eu percebi que a minha câmera continuava indomável.
Assim: ela não obedece nenhum comando e, vez ou outra, executa a mesma ordem várias vezes, uma atrás da outra. Por exemplo: na hora de rever alguma foto, a máquina começava a passar todas elas, num ritmo frenético e não parava de jeito nenhum. Isso tinha rolado antes, no carnaval, e o Manel, quando viu, sentiu um arrepio e disse que parecia aquele último filme que passa na cabeça da gente antes da gente morrer.

O show do Extra Stout começou e a gente desceu.
Fui lá na frente do palco tirar umas fotos e a câmera se portou razoavelmente bem. Tirando o fato dela só fazer fotos em preto e branco e com flash – o que deu pra algumas fotos um ar de filme antigo de jazz – a banda ajudou bastante. Principalmente o naipe de metais.
A menina que tocava trombone percebeu o flash, viu que eu estava vendo como ficou a foto e perguntou se ficou ruim.
Disse a ela que não, que tinha ficado boa sim e ela não fez muito cara de quem acreditava em mim.
Na hora que a banda tocou “Pressure Drop”, o “it’s you” do refrão tinha dona e fiz com que ela soubesse disso. Daria a ela meus olhos pra que ela pudesse ver o mundo do jeito que ele estava brilhando pra mim naquele momento exato no tempo e acho que o fato de estar escrevendo assim é uma espécie de tentativa nesse sentido.
Atrás de mim, uma bichinha me dava bundada e cantava “peixinho bom”, em vez de “pressure drop” e eu nem aí.
Eu estava no alto de um morro, sem camisa, olhando pra frente.
Yeah. It’s you.

O Inferno mudou e eu digo isso pro Joey. O lendário espelho da entrada continua por lá, mas agora existe um pórtico entre o espaço dos caixas, que virou uma espécie de lounge, e a parte da frente do palco. Digo a ele da sensação que tive, que foi do caralho, de estar em casa ao andar lá por dentro. Ele diz que sim, que ali é minha casa sim e que eu tenho obrigação de me sentir assim, que eu tenho obrigação de entrar sempre que quiser, nem que seja só pra dar um “oi”. E disse também que, antes de ir embora, é pra falar com ele, pegar o número do seu celular e ligar na terça feira, pra conversar e ver com ele direito em que dia que eu quero discotecar no Inferno.
Eu.
Discotecar no Inferno.
Tirando isso, acho que só o dia que eu chamar os amigos pra um show do Terremoto Torquemada no Inferno vai ser mais legal. Mas desse dia, é bem provável que eu não lembra de muita coisa.
Assim sendo, dá pra dizer que isto apenas, da discotecagem, já me bastaria pra ficar feliz pelo resto da noite.

Volto pra contar pro Gu e pro Cabelo. Eles dizem que eu sou o único cara que usa chapéu por quem eles têm consideração. No mesmo momento passa pela gente um cara com um chapéu côco, parecendo um mímico do Madison Square Garden e eu entendo o que eles dizem. O Gu diz que ele e o Cabelo acham que o Mano Chao devia ter uma banda de ska. Digo pro Gu que eu acho que ele nunca deveria ter saído no Mano Negra e que o Mano Negra era melhor que uma banda de ska. O Gu conta pro Cabelo e o Cabelo, quando pensa um pouco a respeito, me chama de canto e diz: “Cara, você fez um sonho meu ruir”. Os dois estavam rachando o bico de rir cantando músicas do Mano Chao em cima da base instrumental da banda.
O vocalista termina de cantar e alguém na platéia grita “vai, corinthians!”. Ele responde: “Vai Ronaldo Gordo, comedor de travesti!”. A platéia dá aquela resposta inegável, que é o silêncio mais esquisito que existe. E ele emenda: “Bom, quem é que vai culpar o cara? Quem nunca comeu um travesti, que atire a primeira pedra!”. E ele leva uma latada na cabeça antes que possa terminar a piada dizendo. “No baixista, por favor!”. O Amauri passa por mim, dando e risada e diz: “Ele mandou jogar, eu joguei!”.

O show dos Pingüins Tropicais começa com o tema do Poderoso Chefão e a platéia toda canta como se fosse torcida de time. O ska era música de skinhead na Inglaterra e os skinhead já foram hooligans e algumas das músicas parecem ter sido feitas para serem cantadas por estádios lotados de torcidas encharcadas de cerveja, perdendo cabelos por causa de times tipo o Arsenal, vibrando com as porradas de Tony Adams e os gols do centroavante desastrado Charley George.

No fim do show, o Gu e eu estamos dançando de um jeito ridículo por causa de uma brincadeira que a gente inventou, que se chama: “imagine que você está dançando com os sapatos dançantes do Pateta”. Quando tudo acaba, eu tô sem ar de tanto dar risada e vou lá pegar o telefone do Joey.

A Calu e eu descemos a Augusta rumo ao Estadão porque, em noites assim, não existe fim melhor que um pernil do Estadão.
Quando a gente chega na porta do apartamento da Calu, dou boa noite pro Francelino o porteiro e volto pra casa.
Na volta, sozinho, vou relembrando tudo que aconteceu.
Lembro até de estar pagando, ter digitado a senha do cartão e dito pro cara do caixa: “está processando”.
Ele brincou: “Você tem advogado pra estar processando?”.
“O velhinho que me vendeu cerveja na fila disse pra mim assim: ‘o barato é louco, o processo é lento e o advogado é nóia’”.
E todo mundo deu risada.
Até eu.

Faltava uma coisa só.
Na hora que a gente estava lá em cima, na área vip, comendo bolo de aniversário do Amauri, eu virei pra Calu e disse assim: “lembre-se de mim dizendo isso”.
E disse alguma coisa.
Justamente essa coisa que eu não lembrava.
Mandei um SMS pra Calu.
“Lembra aquela hora que a gente tava lá em cima na área Vip, que eu ia botar um pedaço de bolo na boca e te disse ‘lembre-se de mim falando isso?’. O que foi que eu disse?”.
Enviei.
Deu um tempo e chegou a resposta.
“Você disse: a vida, às vezes, pode ser boa pra caralho. Nestas palavras”.

Não só que a vida, as vezes, é boa não.
É esse mundo que você botou dentro de mim que é lindo de doer nos olhos até arrancar deles o orvalho de um outono todo.
É.
It’s you.
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3 comentários:

Joice Viana disse...

"Eu mesmo, ontem, não pude colocar no GC a frase “atitude é que nem braço: uns têm e outros não” e não pude porque a censura do programa é dez anos de idade." => Como eu disse, nipslip pode, aleijado não. Se for uma aleijada pagando peitinho fica dentro do contexto, aí pode também.

"existem duas mulheres: aquela que põe você num mundo e aquela que põe um mundo em você." => Ainda acho pornográfico isso de colocar um mundo em alguém, mesmo estando sóbria. Se bem que, usando o verbo 'colocar' fica menos esquisito do que 'botar'.

“o barato é louco, o processo é lento e o advogado é nóia” => Parece um daqueles bêbos aleatórios que puxam assunto de vez em quando, sobre a quinta dimensão ou teorias conspiratórias acerca do cinema iraniano.

“peixinho bom” => Oi? Hahahahahaha morri HAHAHAHAHAHA

"Eu estava no alto de um morro, sem camisa, olhando pra frente." => Visão remota? Espero que você não tenha olhado pra baixo ¬¬'

"Eles dizem que eu sou o único cara que usa chapéu por quem eles têm consideração." => Eu gosto de chapéu, se eu pudesse usava direto, mas as pessoas ficam me olhando como se tivesse uma minhoca do deserto saindo pelo meu nariz ¬¬'

"It’s you." => :$

Pronto, gastei =*

Calu Baroncelli disse...

pssssssssssssssss
o tema do Poderoso Chefão foi tocado pelo Extra Stout, antes mesmo deles arregaçarem no funk (do caralho eu achei)... agora se os Pinguins Tropicais também tocaram e eu não lembro, vá lá me dar um desconto, quatro da matina e sua amiga, lesa...

p.s. quando tiver um tempo me mande as fotos do Inferno de sábado e do Inferno do ano passado, pls?

Calu Baroncelli disse...

ah,claro, foi do caralho! da próxima vez prometo beber mais :)