23.3.09

Manifesto T&T





Talvez você não entenda o que a gente vai fazer.
Talvez até entenda,
mas não ache graça nenhuma.

Afinal, o que a gente faz é muito próximo de não fazer nada.

A gente não ensaia.

O que acontece é que a gente toca.

Nenhum de nós é excepcional.
(pelo menos não no sentido musical da coisa).
Acho que a gente nem tá a fim disso.
A gente não quer ser melhor que ninguém.
A gente só quer tocar.
Beber uma garrafa inteira de Dreher,
falar meio-quilo de merda e tocar.
O que é que vai sair, a gente nunca sabe.
A gente só tem que estar preparado.

No começo, foi difícil conviver com essa mania de surfar com o improvável
e de acreditar que, de qualquer jeito, tudo vai sair por acaso.

A gente quer ter um pouco mais de escolha,
ou então, não ter escolha nenhuma.

Se a gente não tá preso pela prisão,
a gente também não está preso pela liberdade.

A gente é escravo de um monte de coisa, a gente sabe,
mas sabe também que, apesar das coisas serem muitas,
a escravidão é uma só.

A gente só gosta de ficar aqui sentado, olhando pras barras da prisão.

A gente aqui,
elas lá
e o resto,
esse espaço que existe entre nós e as grades
é que é a verdadeira liberdade.

A gente pode não saber tocar a melhor música do mundo,
mas o jeito que a gente tocou,
se você ouviu,
era o melhor jeito que a gente podia tocar.

O jeito de agora,
o jeito de já.

Outra coisa é que a gente não toca cover
nem que a vaca tussa sua própria versão
de “bruce lee” em tupi-guarani ou maori.

Tem uma ou outra exceção,
mas é daquelas que só dão certo quando dão errado.
A gente talvez pudesse ganhar o Oscar de melhor canção,
mas dá uma preguiça que só...

A gente não quer nada disso,
a gente quer só tocar.
A gente quer aquela sensação
de que a letra encaixou com a música,
mesmo que depois de um pouco,
as duas se percam outra vez.

A gente quer aquelas músicas simples
que fazia pra pedir coisas quando era criança.

Uma vez, meu irmão e eu ficamos na sala,
cantando que a gente queria CAMARÃO no almoço.
Tava passando desenho na TV,
então a gente cantava baixinho.
"CA-MA-RÃO. EU QUERO CAMARÃO"
Aí, quando acabou o desenho,
alguma coisa já havia se perdido na cantoria
e a gente começou a cantar,
dessa vez mais alto,
que a gente queria "MA-CAR-RÃO".

Minha mãe,
que não tinha um lagostim que seja no freezer,
tinha uma gaveta cheia de todo tipo de macarrão.
Nem se deu o trabalho de perguntar
que tipo de macarrão que a gente queria.
Fez o que veio à mão.
E a gente teve que comer macarrão.

(25 anos depois...)

Um dia, num dos primeiros ensaios,
quando o Américo ainda tocava baixo,
o baixo dele desligou.
Eu tava ralando os dedos numa catarse da guitarra,
enquanto o Igor fodia a bateria dele.
Não me vinha nada na cabeça e,
também por uma questão de ética,
eu não ia começar a cantar sem ele estar na música.
De repente, o baixo ligou.
O Américo falou alguma coisa terminada com “ada”
e aquilo acendeu uma luz na minha cabeça,
que mandou minha boca cantar o que tinha entendido
“terremototorquemada-terremototorquemada”
umas oito bilhões de vezes sem respirar.
Quando a gente parava,
alguém dava três ou quatro toques secos
e a gente começava tudo de novo.
As cordas e peles resistiram bravamente,
mas minha garganta parecia pegar fogo
enquanto eu gritava aquelas palavras sem sentido.
Completamente sem sentido, não.
Porque terremoto é uma coisa que acontece de repente e,
quando acontece,
muda tudo.
Não tem regra,
rola porque é a hora de rolar.
Deus quis e foda-se.
E do mesmo “Deus quis e foda-se” veio Torquemada, o inquisidor.
Ninguém era melhor que ele
pra seguir regras às cegas e cagar com tudo.
Era um nome lindo.
As antíteses todas se beijando na boca,
o oito e o oitenta no mesmo lugar.
Claro que tinha que virar o nome da banda.

A gente acabou a música
e o Américo me perguntou:
“o que é que você tava cantando?”.
Eu respondi:
“Terremoto Torquemada”.
“Por quê?”, ele perguntou.
Eu pausei,
voltei a fita até o último momento antes do baixo entrar
e aquela luz aparecer pra mim.
Aí, eu perguntei:
“Na hora que o baixo desligou e você ligou ele de novo...
O que você disse que aconteceu?”.
Ele respondeu “Mau-contato na tomada”.
Mau-contato na tomada... Terremoto Toquemada.

Foi um erro de comunicação,
eu sei.
E é bem esse tipo de erro que a gente tá a fim de ser.
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