11.3.09

Ganhando Cicatrizes Parte III





Ali estava eu, pela primeira vez na vida, com uma decisão crucial a tomar.
Viver ou morrer.
Essa pergunta não tava assim, tão preto no branco.
Era um “vale tanto a pena viver pra que você se arrisque a morrer?”

Entenda meu ponto: eu estava preso pela perna em um buraco nas pedras da cachoeira do Paraíso, em Peruíbe.
Meu corpo estava deitado, de costas.
Metade dele estava nas pedras.
A outra metade, porém, estava deitada ao longo da queda d´água e estava começando a intuir que não seria possível voltar pra lá, onde estava a primeira metade.
A visão que eu tinha era quase-quase essa da foto.

Havia chovido naquele dia.
Havia chovido MUITO justamente quando a gente foi pra lá.


Toda aquela água que caiu montanha acima estava agora fazendo pressão no meu peito, pra baixo, lá onde a água fazia um barulho de carne quando caía.
A Camila olhava pra mim e eu via terror no rosto dela.
A única coisa que me segurava, era a perna que eu consegui encaixar naqueles buracos e minha pergunta era: por quanto tempo?

Era folga da Camila.
Ela estava fazendo um musical, em Campinas, e, no último mês de ensaio, eles pegaram pra capar. Aquela será a única e miserável folga em que a gente poderia viajar pra algum lugar. Queríamos um lugar bonito e perto, o que me remeteu a cachoeira do Paraíso, que vinha agora se tornando um inferno.



Por quanto tempo?


A Camila deve ter pensado em ajudar, deve ter tentado me puxar pelas mãos, deve ter entrado na água ou alguma coisa assim. Porque foi aí, que ficou claro.

A gente chegou lá e tinha recém parado de chover.
Não havia uma viva alma naquele lugar.

Chegou depois um casal de velhinhos, que se escondeu da chuva e agora queria nadar. Eles ficaram no piscinão lá embaixo e Camila e eu subimos, para o alto do escorregador. E subimos ainda mais um pouco, pra onde a água caía para formar o escorregador que ia cair dentro do piscinão.

A Camila jogou água na minha cara, peguei ela no colo e mergulhei na água como um saquinho de chá. Imitando o tio pão-duro do Pica Pau, eu dizia “um mergulho. dois mergulhos. três mergulhos” e, no terceiro, afundei a cabeça na água. Continuei indo pro outro lado e a gente atravessou o riacho da cachoeira. Lá, do outro lado, a gente achou uma caverna e achou que poderia ser bom tirar proveito dela.

Mas não.

O herói aqui achou que seria melhor testar o riacho, pra ver, se na volta, ia ser seguro atravessar. Não me ocorreu naquela hora que o mais certo seria atravessar como foi da primeira vez, com ela no meu colo, porque aumentava o peso e dava pra encarar a corrente. Tem uma foto minha naquela época e eu devia estar pesando uns 70 quilos. Era evidente que a corrente do rio ia me carregar – como acabou fazendo.
Mas foi meio de brincadeira. Eu ia dando risada e indo pra trás, depois voltava pra frente e a pressão do rio não é como a do mar. Ela não tem idas e vindas. Ela é constante na maior parte do tempo. Só que, dessa vez, por causa da chuva, ela só crescia, só crescia. Foi quando eu achei aquele buraco nas pedras e meti minha perna lá. Enquanto eu mantivesse o pé esticado, daria pra segurar o meu corpo.


Só que, agora, com metade do corpo já caindo e uma percepção súbita de que, se a Camila tentasse me ajudar, ela ia se foder ainda mais que eu, desenlacei meu pé e decidi que era melhor cair.
Pior seria se eu ficasse ali, cansando até cair.
Na hora que eu caísse, eu não ia ter nem condições de me proteger.

Confesso que não sei o que fiz, mas funcionou.

Abri o supercílio - tudo bem.
O que doíam mais eram os dentes.
Um do fundo, aquele que o Jundiaí tinha quebrado, doía mais que todos.
Botei o dedo pro dentro da boca e percebi por que: ele não estava mais lá.
Com o tamanho da porrada, a restauração que morava nele desde que minha mãe arrumou o estrago que o Jundiaí fez, se enfiou para dentro do canal e o dente se abriu em dois, como a flecha de Robin Hood fez com a flecha do xerife de Nottingham.

Claro que eu não sabia de nada disso ainda.
Não sabia nem que isso não era nem o começo.

O que eu sabia era que minhas pernas não estavam quebradas, meus braços também não e tudo de sangue que saía vinha do supercílio, que é um negócio histérico: sangra pra caralho, mas não dói porra nenhuma.


Escutava a Camila berrando lá de cima: “Fê! Fê!”.

Depois ela me disse que, depois que eu caí, ela ficou esperando meu corpo aparecer boiando de barriga pra baixo, lá dentro do piscinão.


Os dois velhinhos tinham desistido de nadar e estavam ao alcance da minha visão, sentando numas pedras, tirando fotos do cu de um sabiá que sabia assobiar.
Fiz sinal pra eles, pra que pedissem ajuda e eles acharam aquilo tudo muito divertido: começaram a tirar fotos de mim.
Por mais que eu estendesse os braços com as mãos espalmadas e gritasse a palavra “socorro”, eles achavam lindo e retribuíam com tchauzinhos e sorriam.
A velha tinha um sorriso grande e o velho tinha um sorriso pequeno, o que me fez pensar que eles estavam fazendo swing com suas dentaduras – o que devia equivaler a sexo oral.

A água caía em cima de mim com tamanha fúria que arrebentou o fundo de todos os bolsos da minha bermuda.
Esfreguei sangue na minha cara e no meu peito de um jeito que ela ficasse bem vermelha.
Aí sim os dois velhinhos se aproximaram e eu pude dizer a eles que precisava de ajuda.
Eu via a cabeça da Camila me olhando lá de cima e dizia pra ela não tentar atravessar o riacho – como se fosse preciso dizer uma coisa dessas.


Enquanto os dois velhinhos chamavam um caiçara, eu ficava pensando em que porra tinha sido aquela de soltar o pé e tentar virar uma cambalhota no ar pra cair em pé nas pedras.

Era realmente necessário?
Embora minhas alternativas fossem (a) sim e (b) não, chutei (c) que equivalia a “foda-se”.
Eu teria a vida toda pra pensar nisso, mas teria um fato a ser ressaltado: saí vivo.
No curso de teatro, muito se falava sobre “ser decidido”, que é uma faca de dois gumes. Porque você pode ser decidido no sentido de quem decide tudo ou você podia ser, também, aquela pessoa que consegue perceber a decisão já tomada e simplesmente vai por ela.


Um caiçara veio pulando de pedra em pedra até chegar pertinho de onde eu estava.
“Você sabe nadar?”, ele me perguntava.
Respondi que sim e ele me apontou o lugar exato onde eu deveria pular.
Pulei.

Meu corpo afundou na água fria e o mundo pareceu infinito como realmente é.
Eu estava vivo.
Eu julho, havia capotado com o carro e sobrevivido. Agora, em novembro, cá estava eu de novo, chutando a morte no cu e assobiando.


Abracei o caiçara quando ele me tirou da água e, de lá das pedras, percebi que havia uma movimentação pra tirar a Camila de lá onde ela estava.
O caiçara disse que eu não me preocupasse; eles iam dar a volta por cima do morro e sairiam ali mesmo, onde estavam nossas roupas.

A velhinha e o velhinho, que eu tinha tido ganas de estrangular, eram só sorrisos – e definitivamente um estava usando a dentadura do outro.
E isso parecia ser um sinal.
Meu dente latejava como se dissesse “vou de dar trabalho”.

Nisso a Camila chegou e a cara dela não era das melhores.
Na real, ela tava puta porque eu quase tinha morrido e, se isso tivesse acontecido, era uma puta sinuca de bico pra ela.
Imagina ela ter que ligar pros meus pais, que ela nem sabia como eram e ter que informar tragédia? O fato foi que, assim que ela olhou pra minha cara, o que era raiva virou outra coisa.
Virou uma mistura de pena com um carinho que eu via pela primeira vez e ela me pegou pela mão e disse que era pra gente ir embora.

No caminho de volta, passada a adrenalina, eu ia variando.
Meu pé doía pra caralho, justamente naquela parte que tinha ficado presa na pedra. Achei que ia apagar e ela pediu pra dirigir o carro.
Na frente da gente, duas motos faziam barbaridades e ela ia ficando cada vez mais irritada.
Uma hora, na subida, o carro morreu e não ligou mais.
Daí, a gente trocou de lugar e eu fui dirigindo até o hospital, tomando todo cuidado do mundo pra não apoiar o calcanhar direito no chão.

Doeu, mas a gente chegou.


Enquanto tomava os pontos, eu pensava em tudo que podia ter dado errado e apertava a mão da Camila entre os dedos como agradecimento.


Depois disso, a gente foi jantar num restaurante na beira da praia e tinha tudo pra ser sensacional, se o serviço não tivesse demorado três horas.
Acabou que a gente foi embora sem comer e subiu de volta pra São Paulo e, só no dia seguinte, eu fui aparecer em casa, com a cara estourada pros meus pais verem.

Minha mãe, na época, ainda era dentista e, quando ela olhou pro meu dente e fez aquela cara de “valei-me virgem santíssima” eu sabia que tava fodido.

Mas isso é outra parte da história.
E ela vai se chamar “O dia em que fiz minha mãe desistir de ser dentista”.
Dona Cláudia já disse que pode.
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1 comentários:

Calu Baroncelli disse...

hei! as partes I e II de Ganhando Cicatrizes não se encontra no seu blog, né?